Texto de Pico Iyer, romancista britânico de origem indiana, escrito para o jornal The New York Times, em setembro de 2013. Iyer descreve uma passagem do Dalai Lama pelo Japão.  Tradução Rafaela Batista.

NARA, Japão – Centenas de sírios foram aparentemente mortos por armas químicas, e pela tentativa de proteger outras pessoas do fato que ameaça matar muitos mais. Uma criança perece com sua mãe em um tornado em Oklahoma, um mês depois que um menino de 8 anos de idade foi assassinado por uma bomba em Boston. Trens descarrilhados reclamam dezenas de vidas, tanto no plácido Canadá, quanto na Espanha. Pelo menos 46 pessoas foram mortas numa série de bombardeamentos coordenados e direcionados à uma sorveteria, estação de ônibus e um famoso restaurante em Bagdá. A enxurrada de sofrimento alguma vez cessa – e pode alguém encontrar algum sentido no sofrimento?

Homens sábios de todas as tradições nos dizem que o sofrimento traz clareza, iluminação; para o Buda, sofrimento é a primeira regra da vida, mas, da mesma forma que alguma parte dele surge da nossa própria ignorância – nossa valorização do ego – temos a cura dentro de nós. Assim, em certos casos, sofrimento pode ser um efeito, assim como uma causa, de nos levarmos demasiadamente a sério. Eu conheci uma vez, no Japão, um pintor treinado na tradição Zen, nos seus 90 anos, que me disse que o sofrimento é um privilégio, pois nos leva a pensar sobre coisas essenciais e nos sacode para fora de uma complacência míope; quando ele era um menino, disse ele, se acreditava que deveria se pagar pelo sofrimento, como se fosse uma benção às escondidas.

Mesmo que nada disso comece a se aplicar à uma criança morta por gás (ou que nasceu com AIDS ou atingida por um motim). A filosofia não consegue curar uma dor de dente, e a pessoa que começa a falar sobre seus benefícios a longo prazo também pode te induzir uma dor de cabeça. Qualquer pessoa que esteve por perto de alguma pessoa querida que sofresse com a depressão sabe que o ciclo vicioso por trás de sua condição significa que, por definição, ela não consegue entender a lógica e reconforto que estendemos a ela; se ela pudesse, não estaria sofrendo de depressão.

Ocasionalmente, é verdade, eu irei conhecer alguém – eu mesmo – que incorre repetidamente no mesmo erro, desatento ao que os amigos e sua própria razão dizem a ele, incapaz de escutar até a si mesmo. Então, ele bate o carro, ou sofre um ataque cardíaco, e, de repente, a calamidade o atinge como um despertador; o violenta de modo nada gentil, e o sofrimento o parte ao meio e o direciona a mudar seus modos.

Ocasionalmente, também, eu verei que o sofrimento pode estar no olho de quem vê, na nossa projeção ignorante. Uma tetraplégica pede que não tenhamos pena dela; ela é feliz, mesmo que sua dor seja mais visível do que a nossa. O homem de rua em Calcutá, Índia, ou em Porto Príncipe, Haiti, derruba todas as nossas noções simplistas sobre a relação entre as terríveis condições de vida e a alegria e energia, e nos pergunta se nós apenas não trouxemos conosco nossas ideias preconcebidas de pobreza. Mas isso muda todas as muitas vezes em que o sofrimento nos abandona com nenhum benefício aparente, sobrando apenas o ressentimento com aqueles que nos dizem para olhar pelo lado positivo, e contar nossas bênçãos e lembrar de que o tempo cura todas as feridas (quando nós sabemos que não é verdade)?

É por isso que a sobrevivência nunca é garantida.

Ou podemos colocar como Kobayashi Issa, um mestre de haiku do século XVIII, fez: “Esse mundo de orvalho é um mundo de orvalho”, ele escreveu num poema curto, “E ainda, e ainda. …” Conhecido por suas palavras de afirmações constantes, Issa viu sua mãe morrer quando tinha 2 anos, seu primeiro filho morrer, seu pai contrair febre tifoide, seu outro filho e uma amada filha morrer. Ele sabia que o sofrimento era um fato da vida, e poderia estar dizendo isso naquele verso curto; ele sabia que a impermanência é nosso lar e a perda é a lei do mundo. Mas como ele poderia não desejar, que isso pudesse ser de outra forma quando sua filha de 1 ano de idade contraiu varíola, e morreu?

Depois de seu poema de luto relutante, Issa viu outro filho morrer e seu próprio corpo ficar paralisado. Sua esposa morreu ao dar luz à outra criança, que também morreu, talvez devido à uma enfermeira descuidada. Ele se casou novamente e se separou dentro de semanas. Casou-se pela terceira vez e sua casa foi destruída pelo fogo. Finalmente, sua terceira esposa deu luz à uma menina saudável – mas o próprio Issa morreu, aos 64 anos, antes que pudesse ver a menina nascer.

Meu amigo Richard, um dos meus colegas mais próximos no ensino médio, criou um blog chamado “Esse mundo de orvalho”, ao receber um diagnóstico de câncer de próstata três anos atrás. Eu mandei a ele algumas informações sobre Issa – cujos poemas, até sua morte, expressava quase nada além de gratidão pelas belezas da vida – mas Richard morreu rapidamente, e com dor, mal podendo andar na última vez que o vi.

Meus vizinhos no Japão vivem numa cultura que é baseada, em algum nível sutil, nos preceitos budistas que Issa conhecia: que o sofrimento é a realidade, mesmo que a infelicidade não seja nossa resposta a ele. Isso contribui para que a imagem de seu povo seja o trabalho duro sem reclamar, estoicismo e uma sensação constante do modo como a dificuldade nos une – como a Grã-Bretanha sabia durante a blitz, assim como outras culturas em momentos de estresse, embora duplamente aguçadas em uma cultura baseada na ideia de interdependência, em que o sofrimento de um é o sofrimento de todos.

“Eu vou fazer o meu melhor!” e “Eu vou colocar isso para fora!” e “Isso não pode ser consertado” são as frases que você ouve a cada hora no Japão; quando um tsunami matou milhares de pessoas ao norte de Tóquio dois anos atrás, eu ouvi muito mais lamentação e pânico na Califórnia do que entre as pessoas que conheço em torno de Kyoto. Meus vizinhos não são filósofos formais, mas o são devido à textura das vidas que estão acostumados a levar – o culto nacional de coisas caindo no outono, o esplendor das flores de cereja acompanhado por sua rápida partida, os poemas semelhantes ao de Issa através dos quais eles estão escolarizados – que fala por uma antiga cultura que é treinada a dizer adeus às coisas e colocar a alegria e beleza dentro de um quadro. A morte nos desfaz menos, às vezes, do que a esperança de que ele nunca virá.

Quando menino, eu aprendi que é a palavra latina, e talvez grega, para “sofrimento” que dá origem à nossa palavra “paixão”. Etimologicamente, o oposto de “sofrimento” é, portanto, “apatia”; A Paixão de Cristo, por exemplo, é um lembrete, e até mesmo uma prova, de que o sofrimento é algo que algumas almas elevadas abraçam para tentar diminuir as dores dos outros. Paixão pela situação dos outros é o que é a “compaixão”.

Quase oito meses após o tsunami japonês, eu acompanhei o Dalai Lama até uma vila de pescadores, Ishinomaki, que havia sido devastada pelo desastre natural. Lápides estavam inclinadas em ângulos disparatados, isso quando não tinham desmoronado completamente. O que uma vez, um ano antes, tinha sido uma próspera rede de escolas e residências, agora era apenas entulho. Três órfãos que mal haviam saído do jardim de infância estavam em seus uniformes escolares azuis para cumprimentá-lo, do lado de fora de um templo que milagrosamente sobreviveu à catástrofe. Dentro do edifício de madeira, perto do altar, havia dezenas de caixas coloridas contendo os restos mortais daqueles que não tinha parentes vivos para reclamá-los, todos perfeitamente alinhados em uma fileira, atrás de fotografias emolduradas, de jovens e velhos.

Assim que o Dalai Lama saiu de seu carro, ele viu centenas de cidadãos que se reuniram na rua, atrás de cordas, para cumprimentá-lo. Ele aproximou-se e perguntou-lhes como eles estavam.Muitos desabaram em soluços. “Por favor, mude seus corações, seja corajoso”, disse ele, enquanto abraçava alguns e abençoava outros. “Por favor, ajude todos os outros e trabalhe duro; essa é a melhor oferta que você pode fazer para os mortos” Quando ele se virou, no entanto, eu o vi afastar uma lágrima de seus olhos.

Então ele entrou no templo e falou para as multidões sentadas lá. Ele não esperava dar-lhes outra coisa senão a sua simpatia e presença, disse ele; tão logo soube do desastre, ele sabia que tinha que vir aqui, só para lembrar as pessoas de Ishinomaki que eles não estavam sozinhos. Ele podia entender um pouco do que eles estavam se sentindo, continuou, porque ele, como um jovem de 23 anos em sua casa em Lhasa, tinha sido aconselhado, uma tarde, a deixar sua terra natal naquela noite, para tentar evitar novos confrontos entre soldados chineses e tibetanos em torno de seu palácio.

Ele deixou seus amigos, sua casa, e até um cão pequeno, disse ele, e, em 52 anos nunca voltou. Dois dias depois de sua partida, ele ouviu que seus amigos estavam mortos. Já havia tentado ver a perda como oportunidade e fazer muitas inovações no exílio, que teria sido mais difícil se ele ainda estivesse no velho Tibete; para os budistas, como a si mesmo, ele apontou, dores inexplicáveis são o resultado do karma, às vezes incorrido em vidas anteriores, e, para aqueles que acreditam em Deus, tudo é divinamente ordenado. No entanto, sua lágrima me lembrou, que ainda vivemos no mundo de Issa do “e ainda”.

O grande público japonês escutou em silêncio e, em seguida, voltou-se, à medida em que seus membros eram capazes, para colocar as coisas juntas novamente no dia seguinte. A única coisa pior do que supor que você pode tirar o melhor de sofrimento, eu comecei a pensar (embora eu não seja budista), é imaginar que você não pode fazer nada em seu rastro. E a lágrima que eu tinha testemunhado me fez pensar que você pode ser forte o suficiente para testemunhar o sofrimento, e ainda assim humano o suficiente para não fingir ser o mestre dele. Às vezes, são essas coisas que nós menos entendemos que merecem a nossa mais profunda confiança. Não é isso que o amor e o assombro nos dizem também?

(Fonte: bodisatva.com.br)




A busca da homeostase através da psicanálise e suas respostas através do amor ao próximo.

1 COMENTÁRIO

  1. Texto significativo e bem vindo no planeta caótico onde vivemos, desde minha infância não me recordo de tempos tão sem sentidos e sombrios como este, que estamos mergulhados. E penso que quando individualizamos as dores percebemos seu peso de menos que, um grão de areia diante do Oceano de sofrimento coletivo.
    Tenho um amigo íntimo que ouviu gritos em sua casa e viu sua própria mãe atear fogo ao corpo…conseguiu salvá-la ou melhor dizendo deixá-la viva, mas a dor psíquica que a levou ao ato não foi sequer tocada por ele.
    O sofrimento do meu amigo ao contemplar a imagem de tocha humana da mãe deixou-lhe marcas profundas…mas, ele enxugou suas lágrimas e seguiu em frente, mesmo sem ter conseguido se curar daquela dor e com nossa convivência, aprendi que o sofrimento nos ensina centenas de coisas e uma delas é o senso de democracia e igualdade social: nenhum de nós está imune ao sofrimento.

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