Talvez você já tenha ouvido algo assim: “Todo mundo tem um preço”, ou então, “Dinheiro não traz felicidade, manda buscar”. Incomoda reconhecer que há um pouco de verdade nisso tudo, não porque as pessoas tenham, de fato, um preço, e muito menos porque o dinheiro, por si só, seja capaz de oferecer felicidade.

A verdade contida nesse tipo de frase sugere algo maior e, assim, nos aponta uma faceta da realidade ainda oculta para a maioria das pessoas: a monetização da vida, isto é, a conversão de todos os aspectos da vida em dinheiro. Já parou para pensar nos efeitos desse processo? Entre os laços de gratidão e a despersonalização do mundo atual, diversos fenômenos (socioculturais, econômicos e psicológicos) se cruzaram ao longo da história. Pois é, o assunto é tão interessante quanto delicado, então sugiro ler com calma para refletirmos juntos.

RELAÇÕES OU TRANSAÇÕES?

Uma vida monetizada é, também, solitária, basta perceber o quanto nos acostumamos a interagir com as pessoas como se fossem figurantes, personagens anônimos cumprindo seus respectivos papéis. Isso, sem contar o aspecto impessoal das transações financeiras. Pagou? Entregou? Acabou. Afinal, uma postura “profissional” não implica, necessariamente, em relações futuras — as partes são dispensadas de qualquer obrigação.

A busca pela estabilidade financeira sofre influência de um tipo peculiar de liberdade que, geralmente, se resume a ter dinheiro suficiente para se livrar de qualquer obrigação — no sentido de “ligação”, do latim obligatio = ob (para) + ligare (atar, unir). Sob essa lógica, se não temos obrigações, somos livres e independentes. Uma transação financeira não requer nenhuma ligação entre os envolvidos. Portanto, quem tem dinheiro não depende de ninguém em particular. Se o padeiro não quiser te atender, azar o dele! Você pode comprar pães em qualquer outro lugar, não é mesmo?

Por outro lado, numa Economia de Oferta, as transações são pessoais e permanecem abertas, criando (ou reforçando) uma ligação entre quem oferece e quem recebe. Quando presenteamos alguém, a intenção é justamente essa: estreitar nossos laços. Presentes implicam em novos presentes, sejam recíprocos ou não. O dinheiro, por outro lado, tem um valor padrão e não requer nenhum relacionamento prévio.

Aqui, vale um comentário rápido sobre os diferentes tipos de economia citados ao longo do texto. Embora não sejam exatamente iguais, utilizarei Economia de Oferta e Economia Colaborativa como sinônimos, versões econômicas provenientes de uma mesma mentalidade. A Economia Monetizada, apesar de enfatizar o processo de monetização, se refere ao tipo de economia que estamos acostumados, ou seja, a uma Economia de Mercado.

No mundo atual, a associação entre dinheiro e interesses é quase automática. Portanto, não se admira que as transações sob a mentalidade da Economia Colaborativa, tais como a contribuição espontânea, o financiamento coletivo ou a corresponsabilização financeira, sejam radicalmente diferentes das transações financeiras. As duas modalidades operam, e reforçam, perspectivas completamente opostas, pois se apoiam em diferentes noções de identidade. Se o que atribui significado ao que chamo de Eu não é igual nos dois casos, parece óbvio que os interesses desse Eu também sejam diferentes. É precisamente essa concepção de Eu, ou self, que dá origem ao mundo que conhecemos e, portanto, deve ser encarada como raiz do problema.

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Após observar algumas culturas primitivas, Lewis Hyde notou que uma oferta (presente) cria laços que vão muito além dos envolvidos, chegando a influenciar toda a vila ou tribo. Esses comportamentos colaborativos tendem a ser reproduzidos em círculos, que se ampliam à medida que a noção de identidade (o Eu) passa a incluir toda a rede de contatos. Assim, um grupo de pessoas que se dispõem a presentear, e confiam na reciprocidade, formam o que chamamos de comunidade. Quando não há esse tipo de mentalidade e confiança, isto é, sob a perspectiva de um Eu isolado, solitário e alienado, os interesses não poderiam ser outros senão o que já é típico em uma Economia Monetizada: acumulação e controle de recursos.

Na maioria das culturas extrativistas, a noção de família ultrapassava os laços sanguíneos para incluir todo o ambiente e, consequentemente, a disposição em compartilhar era algo comum, natural. Havia um clima de confiança e estabilidade, acreditava-se que as necessidades seriam supridas e que tudo o que fora compartilhado, um dia, retornaria, seja através das pessoas ou da natureza. Sob essa perspectiva, o acúmulo não fazia sentido algum.

Tudo mudou com a chegada da agricultura. Aos poucos, enquanto o trabalho era direcionado à transformação do meio (a terra e os animais), passamos a adotar uma mentalidade de conquista e aquisição, deixando a reciprocidade de lado. É curioso notar que ainda se fala em dádivas da natureza, no sentido de tudo aquilo que se recebe gratuitamente, mas será que ainda podemos chamar de “dádiva” se o provedor é cada vez mais manipulado?

Além disso, os agricultores foram percebendo que era necessário estocar alimentos entre uma colheita e outra, afinal, queriam ter alguma segurança — surgia, então, o conceito de propriedade e a mentalidade de acúmulo. Geração após geração, a cultura foi acomodando esses conceitos (propriedade e acumulação) tão fundamentais para a instituição da herança e uma nova noção de família, que passou a ser delimitada pelos laços sanguíneos.

A riqueza adquiriu um caráter quantitativo e, assim, o declínio da mentalidade de abundância ocorreu em paralelo com a nova visão de mundo que surgiu com a civilização. O dinheiro é apenas uma manifestação dessa transição, um reforçador para a mentalidade de escassez e acúmulo que acompanham o empobrecimento da nossa identidade — a Separação entre um minúsculo Eu e todo o resto.

A escassez é um pressuposto fundamental da economia atual, na qual as transações ocorrem quando uma pessoa quer algo que é difícil (ou impossível) de obter por conta própria, mas que outra pessoa é capaz de conseguir mais facilmente. Sendo assim, nosso crescimento econômico reflete uma proliferação de necessidades, uma intensificação de desejos. Quando se confunde progresso com poder de compra, e liberdade com variedade de opções, cria-se uma mentalidade consumista — um estado insaciável de querer o que não se tem. Pare um pouco, vamos pensar no significado de consumismo. Quando “querer o que não se tem” é algo constante e permanente, estamos falando de pobreza, não importa o tamanho da sua conta bancária.

A MONETIZAÇÃO DA VIDA E A IMPESSOALIDADE DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS

A monetização da vida contribui diretamente com o processo de destruição das comunidades em prol da globalização econômica. Em regiões remotas, por exemplo, a troca de trabalho voluntário nas plantações familiares fazia parte do costume local. Contudo, à medida que a mão de obra se tornava mercadoria, e a sobrevivência, dependente do dinheiro, a cultura de colaboração e ajuda mútua foi se tornando desnecessária. Logo, as famílias passaram a contratar trabalhadores e, ambos, mergulharam de vez na Economia Monetizada, agora dependentes não só da venda do que é produzido, mas da flutuação dos preços no mercado global.

A Economia Colaborativa segue o caminho oposto, pautado na interdependência. Como já disse num outro texto, ter estabilidade financeira não significa ser independente, mas sim depender de estranhos. Eles farão tudo o que você precisa para sobreviver, desde que sejam pagos pra isso. Ora, você prefere depender de estranhos ou de quem você conhece? Depende de como você trata as pessoas que conhece, né? A vida monetizada te deixa livre para ser antiético e antissocial, pois torna qualquer vínculo desnecessário. A monetização da vida dissolve as comunidades, e a dissolução das comunidades obriga uma maior monetização da vida — uma coisa alimenta a outra, num ciclo cada vez mais intenso.

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Aprendemos que se deve separar trabalho e amizade, amigos e dinheiro. Para alguns, trata-se de uma questão de princípios, como se isso fosse uma “regra de ouro para preservar amizades”. Se, num passado remoto, a dependência material nos mantinha conectados, hoje, relações econômicas e sociais estão cada vez mais distantes, ao ponto de prejudicar algumas amizades. Sendo “racionais”, optamos pelo menor preço e preferimos o serviço de estranhos ao de amigos. Quando um produto ou serviço se resume a algo padronizado, nada mais do que uma simples mercadoria, o preço se torna seu único diferencial. Competição e anonimato andam lado a lado. Por fim, somos postos em competição uns contra os outros, não por ser algo da natureza humana, mas porque a pressão constante de uma vida monetizada impossibilita qualquer alternativa.

Esse impulso racional, que visa apenas maximizar nossos próprios interesses, não é nada amigável, mas, coagidos pelo atual sistema monetário, é o que fazemos. Se é assim, talvez seja melhor separar amizades e dinheiro, não é mesmo? Mas o que acontece quando se tem uma vida monetizada, já convertida em dinheiro? Dessa separação é que surgem barreiras entre a vida e os amigos, então o que nos resta para compartilhar são apenas superficialidades do cotidiano — amizades anêmicas num mundo exclusivamente material.

Isso não quer dizer que amizades comuns, nas quais tudo o que se faz é conversar, são “piores”. Porém, uma comunidade vai além da simpatia, das festas e dos encontros. Numa comunidade de verdade, as pessoas dependem umas das outras e, por isso, são obrigadas a conviver. Aprende-se a aceitar as pessoas como elas são, afinal, o que está em jogo é a própria sobrevivência. E mesmo que ninguém se dê conta, o mesmo vale para a família, a sociedade e a internet, especialmente essa última, onde dissolver uma comunidade digital ou romper uma amizade é tão fácil quanto apertar um botão.

No passado, ser expulso de uma comunidade era algo muito sério. Se os comerciantes locais deixassem de te atender, simplesmente não havia como pagar qualquer um para substituí-los. Claro, você poderia se mudar para outra cidade, mas ainda teria que fazer parte de uma nova comunidade. Graças à monetização da vida, tudo isso mudou. Pode-se manter o mesmo estilo de vida em qualquer lugar, basta ter dinheiro. Não precisamos conviver com mais ninguém, nem mesmo saber quem são ou sequer cumprimentá-los. Quando tudo é convertido em dinheiro, adotamos (e sustentamos) um mundo de anônimos: clientes, consumidores, fornecedores, prestadores de serviço, alunos, pacientes, usuários, eleitores.

REDEFINIÇÃO E REDUÇÃO DO EU

A maior punição para quem era expulso de uma comunidade não se resumia ao aspecto material, porque as relações sociais não são apenas “táticas de sobrevivência”. Na época, a noção de identidade dependia da relação que tínhamos com o meio, seja por laços sanguíneos, habilidades ou experiência. O tecido social era composto por uma multidão de conhecidos, unidos pela cultura e suas histórias. Portanto, ser expulso significava perder a própria identidade.

Hoje, tanto a comunidade quanto a família estendida perderam sua coesão social, nos deixando apenas com a família nuclear. Avós, tios e primos são tratados como visita — em alguns casos, até irmãos. Numa época de tanta mobilidade, é normal que as famílias se espalhem pelo país. Fora da família, da escola e do trabalho, todas as pessoas que encontramos no dia-a-dia são estranhas, anônimas, e de todas que conhecemos, só a família (geralmente) é íntima a ponto de conhecer a nossa história de vida.

Esse distanciamento dificulta a formação de uma identidade sólida, afinal, quase ninguém conhece a nossa história. Ao longo da evolução como seres humanos, sempre nos definimos em relação aos outros, construindo uma narrativa comum para atribuir significado ao mundo e dar sentido aos papéis sociais que desempenhamos. Por exemplo, numa comunidade em que todos se conhecem, é muito mais fácil construir uma identidade a partir de um contexto mais sólido, robusto e repleto de referências. Porém, o que se percebe atualmente é uma redução dessas relações ao âmbito familiar, ou seja, meia dúzia de pessoas. A noção de identidade é mais frágil quando se estabelece vínculos exclusivos com a família. Assim, mantemos nossa vida privada da porta de casa pra dentro, longe dos colegas, dos clientes, dos conhecidos, dos professores/alunos, dos vizinhos, etc.

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O processo de intensificação das relações pautadas pelo dinheiro é paralelo à expansão do reino privado. No passado, mesmo que todas as funções sociais fossem realizadas publicamente, sempre havia alguma forma de privacidade em pelo menos um aspecto da vida: sexo, parto, etc. Hoje, temos a possibilidade de viver, quase que inteiramente, em casa — um estilo de vida já até adotado por alguns.

Um senso de identidade frágil, quando somado ao isolamento (físico e social) que ocorre nos lares modernos, contribui com um misto de solidão e tédio — epidemia característica do nosso tempo. Toda essa fragmentação da sociedade se tornou, convenientemente, uma oportunidade muito lucrativa. Quando se destrói os valores que sustentam uma comunidade, cria-se também um vazio emocional que demanda algo para substituir as relações perdidas. Temos, então, a imagem da típica nova geração de trabalhadores nas grandes metrópoles: engaiolados em seus apartamentos, desconectados da vida além do trabalho, senão por bares e baladas, mas contentes em se relacionar com os outros através da impessoalidade oferecida pelo dinheiro.

Isso nos deixa extremamente vulneráveis ao consumismo, na esperança de substituir “o que somos” por “o que temos“. Fomos influenciados e condicionados a nos definir pelo que consumimos: carros, casas, roupas, músicas e eventos — por um tipo distorcido de “expressão de identidade” ou uma versão superficial de “estilo de vida”. Além disso, buscamos novas histórias para preencher o vazio dos laços que deixaram de existir. Mesmo que algum vestígio de “história familiar” ainda sobreviva, a função de contar histórias passou a ser dominada por áreas profissionais: entretenimento, educação, jornalismo, ciência, religião. Essas instituições nos oferecem respostas prontas sempre que perguntamos: “quem sou eu?”

Novelas e seriados são projetados para vender, e vendem porque apelam para uma necessidade universal por intimidade e conexão. Nos envolvemos com os personagens e construímos, instintivamente, nossa identidade com base em suas histórias. Ao mesmo tempo, perguntas como “de onde viemos?” e “por que estamos aqui?” também se profissionalizaram, abandonando o passado de mitos e lendas em direção a uma Ciência que se propõe a explicar o mundo, embora esteja limitada aos interesses políticos e econômicos da nossa época.

Aqueles que se encontram enraizados numa comunidade, acolhidos pelo que são, continuarão menos vulneráveis às diferentes formas de consumismo e fascismo, pois ambas se alimentam de uma ânsia por autoafirmação e inclusão. Portanto, para introduzir o consumismo numa cultura remota é preciso destruir o seu senso de identidade. Quando paramos pra pensar, o processo nem é tão complicado assim, basta “juntar as peças” e ordenar os fenômenos, veja só:

Primeiro, introduza produtos importados para quebrar a rede de apoio local e enfraquecer qualquer demonstração de reciprocidade. Questione a autoestima das pessoas com imagens de glamour, sucesso e beleza. Use a ciência como ferramenta para desmerecer a mitologia e as lendas locais. Crie escolas e estabeleça um currículo genérico para substituir os métodos de aprendizado até então utilizados. Unifique todas as línguas e dialetos num único idioma, de preferência o inglês. Importe alimentos mais baratos para inibir o contato com a terra e tornar a agricultura local inviável. Pronto, agora é só gerenciar uma multidão sedenta por consumo, que só pensa na última versão do iPhone.

Saímos de uma economia colaborativa, baseada em ofertas e presentes, e passamos por outras, baseadas na barganha, em mercadorias e metais preciosos, até chegarmos ao sistema financeiro atual. Em alguns lugares, esse processo levou milhares de anos, em outros, ocorreu de maneira repentina e forçada. Independente da velocidade, o processo continua até hoje, sujeitando talentos, habilidades e relações humanas ao domínio da propriedade e, por extensão, do dinheiro. Trata-se da conversão de todas as formas de riqueza, tudo aquilo que nunca fora associado ao dinheiro, em “objetos” que podem ser comprados, vendidos e possuídos. A monetização da vida nos trouxe o anonimato, a escassez e a alienação, e tornou exclusivo o que antes era acessível.

Essa conversão das riquezas sociais, naturais, culturais e espirituais nos faz enxergar a própria natureza da propriedade, do dinheiro e da nossa identidade como seres humanos. Todos os fenômenos citados ao longo do texto — a extinção das comunidades, a naturalização do convívio entre estranhos, a solidão e o anonimato das sociedades modernas, a falta de intimidade com pessoas além da família nuclear, a destruição sistemática do ecossistema — têm sua origem em nosso atual sistema financeiro. E o dinheiro, por sua vez, como poderoso instrumento de padronização e desumanização, está completamente enraizado em nosso atual conceito de identidade, no significado mais profundo do que chamamos de Eu.

Essa longa transição entre presentes e dinheiro, dar e acumular, colaborar e competir, deixou marcas em nós, enquanto sociedade e indivíduos. Quando me sinto perdido, impotente e insignificante diante das estruturas responsáveis pelo status quo, recorro ao que me serve como bússola: intuição, conscientização e humanização. Daí a importância de cultivarmos nossas relações, criarmos uma rede de ajuda, apoio e inspiração mútua, resgatarmos o espírito de comunidade — mesmo que seja, em parte, virtual. Juntos, em comunidade, é possível resistir, priorizar valores intangíveis e cocriar novas possibilidades.

Quer se aprofundar no assunto? Recomendo:
“Sacred Economics”, Charles Eisenstein (livro)
“The Gift: Creativity and the Artist in the Modern World”, Lewis Hyde (livro)
“Ancient Futures”, Helena Norberg-Hodge (livro)
“Economics of Hapiness”, Helena Norberg-Hodge (documentário)




Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP). É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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