No século XIX Nietzsche anunciou a morte de Deus, colocando, portanto, fim a um modelo de vida que pudesse ser estruturada por uma via religiosa.

A bem da verdade, a dupla revolução burguesa do século dezoito, a saber, Revolução Francesa e Industrial, já havia derrubado os resquícios da sociedade feudal.

No entanto, coube a Nietzsche dar o golpe de misericórdia, sendo que este não somente definhou aquela estrutura de pensamento, como também colocou em xeque o próprio modelo racional de perceber o mundo, que vivia com os positivistas o seu auge.

O sonhado progresso previsto pelos positivistas e todos entusiastas da modernidade não aconteceu, pelo menos não em um sentido que promovesse a evolução social de forma diretamente proporcional ao desenvolvimento tecnológico, isto é, proporcional às condições materiais.

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Sendo assim, a solidez dessa modernidade foi paulatinamente encontrando seu ponto de fusão e se liquefazendo, implicando, consequentemente, a confirmação do prenúncio de Nietzsche, no qual teríamos um futuro em que nem a religião, nem a razão seriam capazes de dar uma sustentação sólida à existência humana.

Posto isso, chegamos ao período pós-moderno ou a modernidade líquida como prefere Bauman, em que encontramos um mundo sem referências sólidas, no qual vivemos sem algo que proporcione sentido a nossas vidas.

Nesse mundo do absurdo que não possui grandes propósitos, para lembrar Beckett, os indivíduos sentem-se desconfortáveis diante de uma liberdade infinita que caminha para o nada, já que, segundo Nietzsche, os homens sentem enorme dificuldade em viver sem ter algo em que possam apoiar a sua existência, o que ele chamava de muletas existenciais.

Percebendo a problemática e indivíduos desesperados por algo que possa proporcionar algum sentido a suas vidas, o mercado criou uma solução: a sociedade de consumo.

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O consumismo, assim, se tornou a grande base de sustentação existencial e os shoppings os templos de adoração de um novo fundamentalismo.

Como a sustentação proporcionada através de coisas é frágil, novas coisas sempre devem ser criadas, a fim de manter os fiéis cativos aos templos de adoração, muito embora, a mídia não se esqueça da sua função catequizadora.

Nesse processo, encontra-se o Pokémon GO, mais uma ferramenta criada pelo mercado para manter acesa a fé das ovelhas. Obviamente, a ferramenta trata-se (ou deveria tratar) apenas de um jogo, uma forma de lazer.

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Entretanto, o modo desesperador como muitas pessoas ao redor do globo têm se relacionado com algo que é “apenas um jogo”, confirma a insustentabilidade da nossa existência e os meios frágeis que temos buscado para empreender um sentido a ela por meio dos artifícios da sociedade contemporânea, assim como, problemas típicos do nosso tempo como a solidão e o isolamento.

Esse comportamento leva ainda a outros questionamentos, como a questão do tempo, afinal, nós vivemos na era da correria em que ninguém possui tempo para nada, tampouco, para alguém.

Como pode haver, então, tanto tempo disponível para se dedicar a um jogo? No mínimo paradoxal.

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Para Aldous Huxley, esse paradoxo é explicado pela própria estrutura do Admirável Mundo Novo, ou seja, os mecanismos criados dentro da sociedade têm como função elementar a massificação dos indivíduos, tornando o controle social mais fácil, posto a transformação da humanidade em uma grande manada.

Dessa maneira, há a necessidade de um gozo perene, o qual, em uma sociedade sem referências, passou a ser encontrado, como já dito, na sociedade de consumo.

Nela, a fragilidade existencial passa a ser “fortificada” por meio da padronização, da adequação, da alienação e, quando isso não for suficiente, há ainda o “soma” que resolve todos os problemas, como o Pokémon GO, que além de proporcionar estabilidade emocional, ainda pode tornar o indivíduo alheio ao que acontece.

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Essa fuga de uma realidade não querida é ressaltada também por Ray Bradbury e seus mundos distópicos, como Fahrenheit 451 e O Homem Ilustrado, em que uma série de artifícios, como televisões “interativas”, “superdesportos”, “parques de destruição”, etc., é criada para acalmar os espíritos e eliminar o desejo de pensar.

Em outras palavras, instrumentos que acabam se tornando a finalidade de vidas totalmente automatizadas e sem qualquer senso crítico.

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Enquanto ferramenta, não existe problema algum com o jogo, a questão se direciona ao modo como nós temos nos comportado. Ou seja, a forma como nós temos transformado instrumentos em finalidade e coisas no sentido de vidas.

A forma como estamos cada vez mais dependentes do mundo virtual e alheios ao que acontece na vida real, buscando sempre fugir da dor da existência e das problemáticas relacionadas a ela.

Mais uma vez, não há problema em si com o jogo ou com quem venha a jogá-lo, e sim ao modo como temos nos relacionado com coisas, como se fôssemos zumbis a procura de alimento.

Em um contexto líquido como o nosso, de falta de referências e fragilidade dos laços humanos, é necessário reavaliar de que modo temos através desse modus vivendi conseguido melhorar as nossas vidas e o quanto essa barafunda tecnológica-consumista tem nos permitido ter acesso de fato ao mundo.

Sei que com todas as ressalvas ainda haverá a possibilidade da não associação do “fenômeno” Pokémon GO com o nosso contexto social, de tal maneira que só me resta lembrar Orwell e a transfiguração da realidade pela linguagem, em que “Guerra é Paz”, “Escravidão é Liberdade” e “Pokémon GO é Vida”, mesmo que seja em bolhas chamadas a partir de agora de pokebolas.




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