O segundo casamento trouxe uma novidade: parou de fumar. A esposa também tinha sido fumante inveterada e prometeram a abstinência tabagística por todo o sempre. Ele ainda a consultou sobre se poderia pitar um charuto de vez em quando, mas ficou acordado que era necessário interromper de vez o hábito, para que nunca mais germinasse.

A jura durou oito anos. E, para os dois, aquele bastão branco fumarento parecia não mais existir. A filha cresceu sem nunca ter visto os pais botarem o demônio na boca. Que assim seja, almejavam.

Até o dia que ele foi naquele evento da firma. O doutor Ewerton, diretor-geral, convidou todos os gerentes para a exposição de quadros florais de dona Ermínia, avó do fundador do grupo. Era job, mas foi de bom grado. Em tempos bicudos não deixa de ser uma deferência ser lembrado para acontecimentos no âmbito corporativo. Melhor que ser demitido. Como o Alves, que inventou uma desculpa esfarrapada, faltou ao bar-mitzvá do seu Klein, do Financeiro, e rodou. Ficou apreciando as telas repletas de azaleias, girassóis, crisântemos e bebericando o vinho branco ácido servido nessas ocasiões. O Ernesto, gerente de Metas, abusou do chardonnay e começou a comprar todos os quadros disponíveis na galeria. Foi retirado do ambiente e, para evitar vexames maiores, levado direto para casa numa van do RH.

Foi quando, para surpresa dele, o doutor Ewerton se aprochegou e o convidou para ir ao terraço. Demissão foi a primeira palavra que lhe veio à cabeça. Mas o chefe iria lhe propor algo ainda pior.

– Vamos fumar um cigarrinho, odeio fazer isso sozinho – disse, resoluto.

Dirigiram-se para o lado de fora do pavilhão e o doutor Ewerton puxou uma carteira de Camel, o mesmo que ele consumira por mais de 20 anos. E puxou naquela postura de quem manda, sequer indagou se o subordinado fumava, foi logo acendendo a pontinha com seu isqueiro Ronson dourado.

Fazer o quê? Fumar, é óbvio. Não havia outra alternativa. Deu a primeira tragada e notou um outro evento acontecendo num salão contíguo ao da exposição de telas de dona Ermínia. Um baile de garagem, com pequenos alto-falantes da vitrola reverberando “My Mistake”, do Pholhas. Logo percebeu Renatão, Moby Dick e Paulé dançando de rostinho colado com as três primas da Engenheiro Francisco Azevedo. E se viu segurando a vassoura, esperando a vez de bailar com as únicas três possibilidades femininas da tertúlia.

Como a música nunca acabava saiu da garagem e foi dar umas tragadas na calçada. Deu com a primeira namorada acendendo um Charm. E com que charme fazia aquele gesto de incendiar o tabaco. Ficaram ali um bom tempo. Ela absorta, ele fazendo círculos de fumaça com a boca.

Começou a soar o riff de “Elected”, de Alice Cooper, finalizando a sessão baladinha romântica. Voltaram para dentro, já de mãos dadas, semibailando. Lá pelo meio do Camel, a pracinha do bairro. De novo a gangue, Paulé grita: “ei, o teu pai vem vindo!”. Ele tem que enfiar o cigarro aceso no bolso da calça para evitar maiores constrangimentos. A coxa carbonizada, o vergão, as gargalhadas, uma palmada nas costas. “Não, pai, não fui eu que fumei.”

– O quê é isso, rapaz? Falando sozinho? – replicou o doutor Ewerton dando-lhe um chacoalhão. Amassaram os Camel e voltaram às artes plásticas. No banheiro, ele lavou-se e enxaguou a boca longamente com um colutório azul e ardido.

Antes de entrar em casa ainda se garantiu lançando um Mentos de hortelã na boca.
O que o nariz não fareja, o coração não sente.




Carlos Castelo é psicanalisado, escritor, letrista e um dos criadores do grupo de humor musical Língua de Trapo. É colaborador do Estadão e das revistas Bravo, Ponto (Sesi-SP) e Bula. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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