“Não-violência” foi a tradução mais fiel que Gandhi encontrou para ahimsa, uma palavra em sânscrito que pode ser entendida como amor incondicional ou ausência total de violência nas palavras, no pensamento e na ação. Quando se fala em “não-violência”, podemos ter a impressão de que é algo negativo ou passivo, mas não se deixe levar pelas aparências. Em sânscrito, a negação é utilizada quando se fala de um conceito grande demais para ser nomeado. Se algumas ideias estão além das palavras, não-violência é uma delas.

O amor, apesar de carregar tantos significados e sentidos diferentes, se revela para a não-violência como uma espécie de reconhecimento e acolhimento completo da humanidade que há em cada um de nós, independente do que se faça. Gandhi dizia que “só existe não-violência quando amamos aqueles que nos odeiam”. Nesse contexto, amar é cuidar do outro mesmo quando estamos em posições opostas, mesmo quando tudo aquilo que valorizamos está em jogo.

A Comunicação Não-Violenta (CNV) é a manifestação linguística desse amor e desse cuidado. Quando incorporamos sua essência na prática diária, como filosofia de vida, cultivamos uma capacidade de presença (consciência do aqui e do agora) em sintonia com a vida. Assim, criamos condições para transcender e transformar todo tipo de medo e julgamento, mergulhamos nos mais diversos hábitos para entender nossas necessidades e, enfim, reconhecemos as carências e valores que permeiam nossas reações ao comportamento alheio. Além disso, a presença também abre espaço para entrarmos em sintonia com as necessidades de outra pessoa.

Ahimsa, a qualidade do coração que não vê inimigos, não tem nada a ver com perdão. Não-violência tem a ver com aceitar, de coração aberto, o posicionamento dos outros como a verdade deles, assim como temos nossa própria verdade. Cada verdade tem o seu momento e a sua contribuição para o nosso crescimento. Toda verdade, incluindo a minha e a sua, tem direito ao mesmo tipo de respeito.

A prática da não-violência se apoia na compreensão de que as pessoas agem, acreditam e escolhem em termos das mesmas necessidades fundamentais, humanas, que todos nós compartilhamos. Não importa o que alguém tenha feito, há sempre uma carência na raiz daquele comportamento. A não-violência nos convida a enxergar o reflexo da nossa própria humanidade nos outros, em seus sonhos e valores.

Porém, nem sempre é fácil colocar tudo isso em prática, especialmente quando testemunhamos algum ato explícito de violência. Compreender e acolher o outro não significa tolerar todas as suas atitudes, mas manter-se disposto a ir além do “certo” e “errado”. Isso requer responsabilização por nossos valores mais preciosos, aqueles pelos quais tendemos a julgar o comportamento alheio.

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A Comunicação Não-Violenta pede naturalidade, autenticidade e um cuidado genuíno consigo mesmo e com cada uma das pessoas. Daí a importância de incorporá-la, torná-la parte do seu corpo e do seu próprio modo de estar no mundo, para que não seja apenas uma “ferramenta de comunicação”. Todos os dias procuro me lembrar, no sentido de inspiração e não de cobrança, que a espiritualidade sem prática é apenas idealização.

Confesso que eu poderia escrever um texto inteiro só sobre esse tipo de amor. Embora não seja o foco agora, é preciso reconhecer que poucas palavras têm um horizonte de sentidos tão amplo, então vale compor algumas imagens para tornar essa ideia abstrata em algo mais íntimo do nosso cotidiano.

Gostamos de falar sobre amor como se fosse um sentimento mágico, universal, infinito… a solução para todos os males. Muitas pessoas ficam presas ao sentido religioso ou romântico da palavra, e acabam criando uma resistência sempre que o assunto é abordado. Quando se fala em “amar todo mundo”, isso não te parece distante? E se, ao invés disso, estivermos dispostos a amar cada um, individualmente? O importante é perceber que amor incondicional é diferente de universal.

A CNV nasce da tentativa de manifestar esse amor, que tem mais a ver com o fazer do que o sentir. No início, mesmo que você pratique a CNV como uma técnica, já é possível perceber que algo diferente vai surgindo do encontro com os outros. Isso acontece porque (re)descobrimos o amor quando conseguimos nos conectar verdadeiramente com alguém.
Oferecer a si mesmo aos outros é uma manifestação desse amor. É um ato de amor revelar-se por inteiro, ser autêntico, por nenhum motivo além de mostrar o que está vivo em você; ousar se expor e falar sobre suas fraquezas; oferecer a si mesmo sem medo de críticas, de sentir culpa ou punir, apenas “aqui estou, e é isso que eu gostaria”.

Reconhecer e receber o que os outros nos oferecem também é uma manifestação desse amor. Ouvir com empatia, estar presente e conectado ao que está vivo em alguém, sem julgamento. Estar disposto a perceber, naquele momento, o ser humano que está na sua frente e o que ele gostaria.

A única forma de lidar com um mundo tomado pela violência é amar tanto quanto possível, e mais um pouco, até que a sua própria existência seja um ato de rebelião.




Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP). É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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