Em 50 Tons de Cinza (2015), Anastasia Steele (Dakota Johnson) é apresentada ao mundo do sadomasoquismo através de seu relacionamento com Christian Grey (Jamie Dornan).

O que poderia ser uma ótima oportunidade para discutir abertamente a sexualidade feminina acaba sendo um desastre, com direito à romantização de um relacionamento abusivo e uma representação distorcida desse tipo de fetiche e das pessoas que o praticam.

No final, Anastasia se recusa a ultrapassar seus limites e põe um fim na relação.

É nesse ponto que tem início a sequência 50 Tons Mais Escuros, que estreou semana passada quinta feira no Brasil. Logo nas primeiras cenas, fica claro que Grey não mede esforços para ter Anastasia de volta — e, ao mesmo tempo, demonstrar seu poder e sua fortuna.

A proposta do filme é que, por ela, ele está disposto a “renegociar os termos” da relação. O amor dele é tão grande que ele “não precisa fazer nada que não a deixe confortável”. Mais uma vez, uma grande chance de usar a visibilidade da saga para discutir relacionamentos abusivos é desperdiçada.

O filme comete dois grandes erros: o primeiro é apresentar os esforços de Christian como românticos. Não deixar Anastasia desconfortável não deveria ser uma vantagem, e sim uma condição básica para qualquer relacionamento. E a romantização de atitudes problemáticas não para por aí: Grey diversas vezes contraria as vontades da namorada no dia-a-dia (como se o único problema fosse forçar a barra na cama) e ignora quando ela questiona o quão possessivo ele insiste em ser.

O segundo, talvez ainda mais grave, é justificar todos os defeitos do personagem com o abuso sofrido por ele na juventude. O segundo filme da trilogia se propõe a explicar por que Christian age dessa forma, mas também falha nesse quesito. Sempre que os personagens chegam perto de discutir o assunto, é feita uma referência vaga ao trauma de infância sem maiores detalhes e imediatamente os dois transam. Acaba sendo um desserviço não somente narrativo, mas também social: o filme reforça o estigma de que todos os praticantes de BDSM são traumatizados e pervertidos. Além disso, a forma como o personagem é tratado passa a impressão de que se o seu parceiro abusivo tiver um passado trágico, o abuso não é tão ruim assim.

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Há pelo  menos um ponto positivo em 50 Tons Mais Escuros: até certo ponto do filme, é possível separar o sadomasoquismo do relacionamento abusivo. Anastasia e Christian retomam o namoro com a condição de que o fetiche dele seja deixado de lado. Nessas cenas, a relação deles continua tóxica: ele continua extremamente possessivo e controlador, mesmo que evite fazer isso durante o sexo. Essa seria a deixa para explicar que o problema de Grey não é necessariamente o sadomasoquismo, mas sim todo o seu conceito de relacionamento. Contudo, a abordagem escolhida é outra: Anastasia se esforça cada vez mais para ajudá-lo a lutar contra seus instintos e ser um namorado decente.

A partir da metade do filme, diversos conflitos são apresentados (a maioria deles problemática) e a narrativa se torna confusa. Duas ex-namoradas de Christian aparecem para atrapalhar o namoro deles, já que a obra não estaria completa sem rivalidade feminina. Uma delas é a clássica “ex louca”: ela não superou o fato de ele ter terminado a relação e o persegue desde então, ainda presa na dinâmica de poder que ele estabeleceu, em que ela é a submissiva. A outra é a mulher mais velha que introduziu Grey ao sadomasoquismo e fechou com chave de ouro o ciclo de abuso que, supostamente, o deixou do jeito que ele é. Anastasia parece se sentir obrigada a provar para si mesma que é melhor que as duas.

O filme é, de fato, uma continuação de 50 Tons de Cinza. Assim como o anterior, tem uma narrativa fraca, mas é divertido de se ver com as amigas para dar umas risadas nas cenas de sexo e problematizar depois de sair da sala do cinema. Mas esse último passo é essencial: qualquer uma que assistir a 50 Tons Mais Escuros deve estar ciente de que o filme não retrata nem a realidade do sadomasoquismo nem um relacionamento saudável.

*Texto publicado originalmente por Luiza Missi no Site Lado M e reeditado com autorização do administrador.




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