(*) Este texto foi escrito em atenção a um colega acadêmico, que solicitou um breve estudo psicanalítico do conto “Palhaço da Boca Verde”, de autoria de Guimarães Rosa.

Habitualmente não “psicanaliso” obras de arte ou, através delas, seus autores; não existe processo psicanalítico unilateral. Cumpre assinalar que fiz não uma interpretação psicanalítica em si, mas uma das vertentes possíveis do conto, uma hipótese lastreada pela teoria psicanalítica.

Outras caberiam, por certo. Portanto, não se trata tampouco de interpretar a intenção do autor: o que ele pretendeu já está escrito, não importa se baseado em alguma estória real, devaneada ou puramente ficcional. Alguns termos técnicos utilizados estão grafados em itálico.

X. Ruyvasconcellos, bom palhaço, Mema Verguedo e Ona Pomona, bonitas e artistas, trabalhavam no mesmo circo da região, até este ser encampado por outro, europeu, de maior porte. Tal fato aconteceu após o falecimento do proprietário do circo, T.N. Ruyvasconcellos, possível parente de X.Ruy. Após o que os três profissionais circences enveredaram por destinos diversos.

X.Ruy era um palhaço bem visto pelo público e gostava de sua função.

Era no palco que ele se realizava: diferentes apresentações, com vestes, apetrechos e falas diversas, ainda que sempre como palhaço. Com suas apresentações conseguia equilíbrio na busca de sua mais íntima personagem; de seu eu essencial, de sua ipseidade.

X.Ruy, sabendo-se cardíaco e canceroso, optou por ficar na região e afastar-se do trabalho circense, não aceitando a proposta do circo estrangeiro.

Fora do palco apresentava-se homem recatado, tímido, pacato, educado. Mas sentia amar Ona Poloma com intensidade, embora dela nunca tivesse se aproximado nem que fosse para falar de seu amor; o que desejaria fazer um dia, dia este sempre postergado.

Esta vivência lembra de perto uma formulação de Freud a respeito de homens com dificuldades para uma ligação amorosa concreta e duradoura. Dizia o mestre, referindo-se a cidadãos vienenses dos anos vinte : “Quando desejam, não amam ; onde amam não podem desejar”.

Ona Pomona , bela, delicada, diáfana, nunca percebera tal intenção de X.Ruy.

Solta, livre, não somente aceitou de imediato o convite do novo circo e partiu com ele para a Europa, como por lá se casou.

Seu distanciamento e indiferença amorosa em relação ao colega palhaço é que, paradoxalmente, estimulavam neste os sentimentos amorosos por ela, pois assim este se defendia na sua timidez. Não se reprimia quanto a este afeto, mas não o expressava verbal ou fisicamente. Isso propiciava a X.Ruy
idealizar Ona Poloma, o que a tornava, na prática, inalcançável, pois tornada um mito.

Assim, a um só tempo o sentimento era liberado mas sua expressão reprimida. Quanto mais impossível, maior a intensidade desse tipo de amor vivenciado pelo palhaço; uma relação unilateral de afeto, ou seja, parcial. Sublimado ou platônico.

Mema Verguedo, tuberculosa e com certa fragilidade para enfrentar a Europa, escolheu, talvez por isso, trabalhar num prostíbulo de uma cidade próxima.

Talvez. Porque sofria também outra dor, a de uma forte desilusão amorosa; e, já que não teria o homem a quem amava e desejava, passaria a ter todos que a quisessem, mesmo sem amá-los.

Muito desejante e assertiva, o endereço de seu amor era X.Ruy, que não percebia tal intenção de Mema, por repressão de seus – dele – sentimentos e desejos. Como ele decidira ficar pelas redondezas, tal decisão contribuiu também para que Mema ficasse por aqui.

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Mema se frustrava com esta indiferença e também por percebê-lo atraído pela colega de trabalho. Um relacionamento amoroso entre ela e o palhaço seria mais que possível da sua parte. E, por isso mesmo, ameaça para ele.

A timidez e inibição de X.Ruy recalcavam por completo qualquer possibilidade de um caso amoroso com Mema.

Quanto mais possível um relacionamento, mais era acionada, inconscientemente, sua timidez, que aumentava; por isso mesmo, ameaça nada pequena para X.Ruy . Donde sua completa repressão a qualquer inclinação amorosa dela, por quem sentia apenas simpatia, medrada com certo receio.

O palhaço passou a cultivar a ideia fixa de localizar Ona onde estivesse, para, enfim, declarar-lhe seu amor. Coisa que nunca ocorrera quando bem próximos, foi necessária uma grande distância física para ele fantasiar se mostrar a Ona Pomona, meta consciente de seu amor.

Sua timidez trabalhava em duas frentes opostas: tentando um amor impossível, sublimado – que inconscientemente obedecia sua dificuldade de se expressar -, e não percebendo ou sentindo nada pela mulher que o desejava – uma vez grande sua repressão pelos afetos e desejos reais.

Possivelmente teria mesmo uma resistência à própria pessoa física de Mema, que lhe queria, e uma idealização de Ona, que nem o notava no campo amoroso.

Já havia solicitado alguma informação do paradeiro de Ona para algumas pessoas e para a própria Mema, pois ambas eram amigas à época em que trabalhavam no circo. Esta, além de não fornecer nenhuma informação concreta, por vezes lhe endereçava desaforos; e ainda que soubesse de algo sobre Ona, a ele não diria nada e chegava a vaticinar o porquê de ele não lhe pedir pessoalmente notícias da outra.

Houvesse esta chance e Mema poderia ver se X. Ruyvasconcellos passasse de fato a existir para ela. Sentia uma coisa estranha: como se fora do palco X. Ruy não quisesse ou não conseguisse ser ele mesmo.

De forma intuitiva ou por despeito, não acreditava naquele amor dele pela outra (Ona) e chegava a vaticinar sua vinda até ela, desejante como os outros homens, porém recebido com grande amor.

Após o fechamento do circo, meses antes, ela colocara na mala, sigilosamente, os vários materiais e adereços das fantasias de X.Ruy e levou-os consigo para a cidade onde agora habitava. Além de lembranças dele, possível tentativa de despir o palhaço e ver como se comportaria o homem em si, amado e desejado.
Que persona as vestes protegiam?

E, ainda no ambiente circense, X.Ruyvasconcellos recebeu proposta enfática vinda de São Paulo para trabalhar em outro circo daquela região. Procuraram também por Ona , impossível pela ausência, e também quiseram contratar Mema . Ambos – esta e o palhaço -, mais uma vez declinaram do convite. A postura da artista, agora mulher da vida, foi calcada na de X.Ruy : “-Ele não vai.” E, portanto, ela também não iria.

Alguns meses após o fechamento do circo, X.Ruy, sedento de notícias, tomou uma decisão: embarcou no trem para a cidade onde se prostituíra Mema, visando com ela falar cara a cara. Queria enfatizar sua necessidade de notícias da outra.

Além do trem, com alguma cautela, tomou também uns goles etílicos. Em determinado trecho da viagem lembrou-se de ter consigo um retrato onde estavam as duas: Mema e Ona.

Gostava de, vez por outra, contemplar a figura retratada de Ona. Para não gerar nenhuma dúvida, resolveu rasgar a imagem de Mema do retrato, deixando somente a de Ona, o que facilitaria mostrar o seu rosto, mulher desejada, para quem quer que fosse.

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Chegado ao destino, ao tirar o retrato para ser mostrado, inclusive para Mema, é que se dá conta de ter cortado a imagem errada: tirara e picara a da Ona e preservara a de Mema, num claro ato falho (que significa fazer inconscientemente algo diferente ou até oposto ao que se pretenda).

Sente-se confuso e transformado e se identifica, neste exato momento, como Xênio Vasconcellos, resolvendo um dos Xis da sua questão identificadora.

Tartamudeando “- …nona … nopoma … nema…” ele condensa, desloca e desliza os dois nomes e as duas mulheres numa só; e completa, assim, sua ipseidade amorosa.

Mema percebe-o também Xênio, a pessoa real fora do palco e vivencia com ele uma situação amorosa inteira, pois afeto e desejo estão lado a lado; e a relação é bilateral, uma vez compartilhada por Xênio.

Mema acolhe-o por completo e se amam e se possuem abrasivamente.

Foram encontrados abraçados, nus e mortos no dia que se seguiu, numa conjunção rara de pulsões de vida e morte simultâneas.

Acontece que o organismo humano vive, com frequência, numa disputa interna entre momentos de tensão – incômodos -, e de distensão – prazerosos.

E assim vai se vivendo até que um dia o organismo vivo se cansa desta disputa e vence então a distensão total. Mas este cansaço vai acontecer segundo o ritmo, o modo e o tempo de cada um.

É a pulsão de morte, que culmina, quando natural, com a homeostase total ou Princípio de Nirvana, o descanso eterno. Mema Verguedo e Xênio Ruyvasconcellos compartilharam em vida uma inteira , breve e intensa relação amorosa, unidos até que o além da morte os confirmasse como par.




Médico Psiquiatra e Psicanalista. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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