O ritual começa com a torcida pra Dezembro acabar logo e com a listinha de desejos pro ano que vai começar. O pacote inclui também aquela esperança esquisita de que o calendário novo é feito não de papel, mas de um pozinho mágico capaz de transformar tudo à sua volta… E aí, via de regra, vem a frustração, vem a carruagem virando abóbora, o cavalo virando ratinho e até o príncipe virando sapo… mas, que bom saber, ainda há tempo de tentar salvar o sapatinho de cristal!

Senhoras e senhores, atenção, 2020 acaba de ser visto, todo vestido de branco – ele já está em traje de Réveillon -, adentrando a enorme passarela do tempo ao redor da qual estamos sentados. Solicitamos a todos que se levantem para saudá-lo com uma sonora salva de palmas, porque o desfile já vai começar! Clap-clap-clap!

E o ritual se repete. Ânimo, empolgação, promessas, pique renovado e – ela não podia faltar! – aquela caprichada listinha de planos infalíveis pra tornar o ano novo melhor que o anterior. Não, não… melhor é pouco. Pra tornar o ano novo o tempo mais perfeito, incrível e brilhante das nossas vidas! Aêêê, agora sim começamos a conversar sobre o assunto!

Nada recarrega mais nossas baterias que o ato de COMEÇAR. No primeiro dia de academia você tem certeza que nunca mais na vida vai passar 24 horas seguidas longe dali (e já se sente magérrima depois da primeira série de agachamentos). No primeiro dia de dieta você pode jurar que está completamente saciada e nem por dez barras de ouro comeria mais uma azeitona. Lê 100 páginas seguidas do livro novo como se fosse almanacão de férias da Turma da Mônica e, pelos seus cálculos, em cinco dias começará o próximo da lista – afinal, neste ano serão 3 livros por mês! E a primeira aula daquele curso? É tanta empolgação que neguinho já sai comprando livros e planejando a matrícula nos módulos mais avançados – porque, afinal de contas, é o caminho natural de quem encontra sua verdadeira vocação! Viva, viva, já era sem tempo!

E aí o que normalmente acontece é que a dose de expectativa é grande demais pro nosso potinho de realidade. A gente até tenta enfiar tudo lá a duras penas, mas depois de um tempo é forçoso admitir: não dá, simples assim.

O próximo passo, então, é furar a academia por três dias seguidos; a culpa aparece e a ansiedade nos faz comer aquela azeitona – junto, claro, com as empadas que ela estava solenemente enfeitando até então. E depois de uma noite lascada de indigestão, a gente de repente se dá conta de que não tem taaaaanta vocação assim pra Estudos Vikings. Ai caramba, será que algum fã de Obelix e Asterix se interessaria pelos 76 livros comprados no embalo? E por falar em livro… Onde será que enfiamos aquele volume chatissímo que nunca mais saiu da página 102? Tá difícil até de lembrar o título da bagaça…

Pronto! O feitiço da empolgação foi desfeito com sucesso. Ainda é fevereiro e o ano já está igual a tantos outros anos. E a gente volta pra rota do “mais do mesmo”, sem sonhos novos. Sem aquele brilho que, até poucas semanas, iluminava o papel no qual anotávamos planos incríveis para o melhor ano de toda uma vida!

O fato é: planejar é preciso, mas viver é ainda mais. Sim, algumas coisas demandam planejamento – é inevitável. Mas se focar no amanhã virar um hábito, onde vai parar o presente (que na verdade é tudo o que temos)?

Quando conseguimos nos concentrar no AGORA uma mágica acontece. Agregamos qualidade ao que estamos fazendo, agregamos paz à alma, eliminamos grande parte do sofrimento que advém da ansiedade ou das situações frustrantes que não somos capazes de reverter.

Focar no agora significa não desviar a atenção nem o pensamento do que está acontecendo de verdade naquele momento. É abraçar com intensidade e com a máxima alegria o que a vida está nos oferecendo right now – seja um encontro divertido com os amigos, a elaboração de um relatório complicado no trabalho ou o chororô de um coração partido. Tudo tem seu encanto quando conseguimos nos dedicar inteiramente ao que estamos fazendo ou sentindo, quando entendemos que existe um momento certo pra tudo na vida, até pras mínimas, esquisitas e doloridas coisas.

Millôr Fernandes já sabia: “o fundamental é aproveitar o tempo, não no sentido utilitário e materialista, mas no sentido do gozo existencial, do dia a dia, da hora a hora. Quem perde tempo, se perde no tempo.”

Então, pra 2020, eu só quero planejar em linhas gerais o que precisa de planejamento. Quero lembrar SIM das minhas metas, mas sem tanta ansiedade e empolgação. Quero tentar enxergar mais o encanto de cada dia, de cada minutinho de vida que se renova cada vez que eu faço esse exercício (ao mesmo tempo complexo e automático) que é respirar.

Botando no papel, em 2020 eu quero:
– Ingerir menos carne;
– Fazer dieta de multa de trânsito – porque né, cinco multas em 365 dias já foi um belo samba na minha cara, no meu bolso, na pontuação da minha carteira.

Fim. Eis a minha lista completa de planos-planejáveis pro ano novo. Fora isso eu quero apenas experimentar mais e mais a sensação de completude que existe quando percebo o ar enchendo meus pulmões, quando sinto o cheiro do fim da tarde – que eu adoro, mas nem sempre percebo -, quando respondo a um simples e-mail de trabalho com energia, quando converso doando minha completa atenção, quando tomo meu café da manhã sozinha em casa, quando estou no mercado procurando o sabão em pó na prateleira, quando leio um livro, quando administro minha fúria depois de um dia difícil, quando me divirto com bobagens, quando choro até pegar no sono, quando escrevo um texto com coração aberto e, parecendo recompensa, ouço ao fundo o Lenine dizendo que até quando o corpo pede um pouco mais de alma a vida não para (não para não!).

Está, então, oficialmente lançado meu desafio pra 2018: ganha o prêmio quem tiver a menor lista de planos e a maior lista de AGORAS. Mas não de quaisquer agoras. Só valem os agoras bem vividos, os agoras intensos, os agoras que se bastam porque são naturalmente completos e cheios de alma. Aí sim poderemos esperar um ano de muitos encantos, desafios, surpresas, crescimento e renovação constante. Já é hora de ativar nosso enferrujado agorômetro (só as crianças sabem usá-lo devidamente!) e começar a praticar tipo assim… agora!

Com disciplina e com QUERER DE VERDADE a gente chega lá. Aliás, com disciplina e com QUERER DE VERDADE a gente chega a qualquer lugar!

Feliz agora novo, minha gente!




Graduada em Letras, com MBA na área de Engenharia da Qualidade, não trabalha nem numa área, nem na outra - o que mostra que nem tudo é linear nessa vida. Não é terapeuta, nem psicóloga; está começando a tatear seus caminhos profissionais na astrologia (porque é por ali, no meio das estrelas, que o coração dela estacionou há tempos...). Tirando a parte dos rótulos, ela é apenas uma dessas pessoas que tentam viver com ética, bom humor, leveza e autenticidade - e que nem sempre conseguem, mas continuam tentando. Escrever foi a forma que ela encontrou, desde muito criança, para organizar a bagunça da mente e do coração. Por sorte, tem funcionado desde então. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

1 COMENTÁRIO

  1. Siiiiim, adorei o seu texto!
    E me fez pensar: eu preciso mesmo que o relógio marque meia noite e a data mude o último dígito na parte do ano para mudar algo na minha vida? Para tomar decisões?
    Acho que não. E por isso o ano novo pode ser amanhã, hoje a noite ou AGORA. Que motivo tenho eu para que não seja agora?

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