Ser um bom terapeuta pede consciência da própria maldade, da própria mesquinhez, da nossa imensa capacidade de ser escroto… e aceitar que isso é parte nossa, mesmo que lutemos, todos os dias, para controlá-la.

Não foi apenas uma vez, mas várias, em que eu tive que lidar com gente em profundo sofrimento durante a sessão de terapia. E a vontade que surge, muitas dessas vezes, é de consolar a pessoa, dizer que tudo vai ficar bem, que ela não tem culpa de nada… só que eu não posso fazer isso.

Meu papel é buscar as camadas mais profundas desse sofrimento e ajudar a montar um quadro mais completo que possibilite a pessoa sair dessa situação. Na maior parte das vezes, as peças que faltam no quebra-cabeça são as que mostram os pontos fracos e feios. Daí tenho que atentar o sujeito em análise que todo aquele sofrimento é causado por um profundo desejo de ser idolatrado. Ou que tudo aquilo nasce de uma covardia que chega a ser ridícula. Ah!!! como dói fazer isso! E não dói por causar esse choque na pessoa, dói, principalmente, por perceber que eu só consegui identificar esse sentimento, pois, em algum momento da minha vida, eu também fiz algo parecido.

O psicoterapeuta, ao contrário do que acreditam ou querem fazer acreditar por aí, não é a figura mais luminosa de nossa sociedade. Nosso papel é descer, todos os dias, para os recônditos mais obscuros… nossos e dos outros.

Não sou adepto da teoria de que existe, em algum lugar, um eu verdadeiro… nunca gostei dessa forma de entender as personalidades e as pessoas. Pensar isso nos levaria a crer que tudo que é apresentado publicamente seria uma mera fachada e só descobrimos a verdade em algum momento de deslize ou fraqueza da pessoa, em que ela transparece sua verdadeira identidade.

Acredito que isso não faça sentido, pois vejo, todos os dias, que somos a multiplicidade dessas características. Ao mesmo tempo que uma pessoa é seus desejos mais inconfessáveis, ela também é todo seu esforço em não realizá-los. A complexa equação que surge disso tudo é que acaba por produzir o que é o sujeito.

Por outro lado, não podemos negar que existem camadas de apresentação sobre nossa personalidade. Geralmente mostramos, apenas, o que é mais aceito no meio em que estamos inseridos… e isso não é sinal de que mostramos nosso melhor lado. Às vezes, por exemplo, agimos de forma subserviente ou medrosa, quando temos uma força interna real, mas preferimos não demonstrar para não causar comoção ou não produzir algum tipo de competição. Tudo depende do meio e do momento.

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Hoje temos falado muito dos esforços em compreender o outro. Em “se colocar no lugar de quem sofre”. Tenho grandes resistências com esse discurso. A minha resistência surge [entre vários motivos] por perceber que essa ligação com o outro é capenga. Tentamos absorver o sofrimento alheio pela via mais limpa, pelo caminho que é melhor aceito socialmente.

Vamos pegar um exemplo comum… quando falamos da produção social da criminalidade e queremos entender de forma “empática” o que levou aquela pessoa para “o mundo do crime”, buscamos falar sobre a pobreza, as condições difíceis, o desamparo familiar, etc. Claro que tudo isso deve fazer parte dessa análise, mas acabamos escondendo os pontos mais feios dessa história e deixamos de trabalhar percepção da violência que é inerente a esse meio e como quem decide por esse caminho tem uma certa propensão a isso. Não pensamos no alto valor que se dá à competitividade predatória em que vale tudo para se subir na vida ou mesmo nos desejos mais mesquinhos de consumo.

Até para lidar com a vilania, idealizamos suas histórias e propósitos, pois se ligar ao pior dessas histórias, proporcionaria a percepção desses piores sentimentos em nós mesmos. Criamos uma concepção maniqueísta de que aqueles são totalmente maus enquanto os nossos foram vítimas de circunstâncias desafortunadas. Grande bobagem!
Não existe verdade quando protegemos nossa consciência do contato com a sombra… com aqueles elementos tão feios que nos recusamos em perceber.

Ver o outro e ver a si mesmo é tarefa que exige coragem. Sem essa disposição, tudo que sobra é um faz de conta sem substância e que cobra seu preço em uma vida incompleta e sintomática.

Você tem coragem de enfrentar isso tudo? Ou prefere fingir um mundo de pessoas boas e más, cada uma em seu canto? O preço pode ser alto, mas é das poucas experiências que valem a pena.




Marcelo Marchiori é psicólogo clínico, especialista em interpretação de sonhos e imaginação ativa. Escreve [quase] diariamente sobre psicologia, comportamento e sociedade. Pode ser seguido por seu perfil no Facebook. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo, quanta precisão nos detalhes, incrível mesmo a sensibilidade em conseguir captar tantas coisas da parte psicológica.

  2. Muito bom texto, escrevi recentemente um artigo nesse tema, sobre como é mais fácil ser empático com o que sofre e não com aquele que adere a certos comportamentos imorais perante nossa sociedade, como esse comportamento de ser empático pode ser moldado pelo inconsciente social de cada cultura.

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