Faíscas saíram de nossa pele quando nos conhecemos. A intensidade daquele momento anunciava dias de alegria plena. Mal podia esperar o instante em que o encontraria novamente. Suas mensagens carinhosas e cheias de um futuro certo me faziam voar até a luz do sol. Bronzeando meu corpo quente e colorindo minha alma já apaixonada. Seus beijos ansiosos inundavam minha vida de prazer e querer mais e mais.

Foram meses intensos de amor e paixão, recheados de cumplicidade recíproca. Teu amor sublime completava uma parte da minha vida vazia fazia muito tempo. O conto de fadas há muito desejado se concretizava. Mas como após o felizes para sempre não fazemos idéia do que acontece, a realidade se abateu sobre meu mundo, jogando na minha cara a ingênua que eu era.

Meu príncipe me chutou. E não foi desses chutes no sentido figurado, que a gente espera quando o amor acaba. Foi um chute com toda sua força, literal, atirando-me contra a parede da sala. Desabei sobre a mesinha de centro, quebrando o vidro, os enfeites de porta retrato e o meu coração. Os cacos que entraram em minha pele não chegavam nem perto de provocar a dor que senti ao ver meu conto de fadas desfeito.

E não era a primeira vez que ele me agredia, mas eu me recusava a enxergar a gravidade da situação. Já devia ter previsto isso. Alguns gestos de meu príncipe insinuavam a impossibilidade de um final feliz.

Ele abusava de mim, mas não fisicamente, visto que nossas noites de amor eram perfeitas e consensuais. Ele abusava da minha mente, do meu psicológico, ele me fazia uma presa frágil em suas mãos.

Foi difícil perceber isso. No início, mesmo teu ciúmes parecia fofo. Ciúmes eu achava ser uma prova de amor, não queria deixá-lo angustiado e por isso cedia a todos os seus caprichos. Não usava decotes, nem saia curta, porque eu devia me preservar e evitar os olhares dos “lobos” da rua.

Mal sabia naquela época que o lobo mau era ele. Também tomava cuidado com quem conversava, é claro, tinha que dar o respeito, como uma mulher comprometida deveria agir. E não podia esquecer o jeito que cumprimentava meus amigos, sem beijinhos, por favor, e nada de risos soltos, porque não devia dar uma impressão errada sobre mim ou minhas intenções.

Eu acreditava que fazia o certo, afinal não ia gostar de vê-lo de risinhos com alguma amiga, não é verdade? Bem, eu achava que era. Ou melhor, ele colocou isso na minha cabeça.

Mas então comecei a perceber que ele olhava o decote das outras na rua, tinha amigas virtuais, andava sem camisa porque estava calor. “Ah isso é coisa de homem”, eu pensava e nada falava. Não queria estragar meu romance feliz. Ele me olhava com tanto amor e admiração que eu imaginava nunca mais encontrar outro amor assim.

Ele cuidava de mim. Abria a porta do carro como grande cavalheiro e decidia sempre aonde iríamos. Ele sabia o que era melhor para mim e eu me sentia feliz em ter um companheiro tão dedicado.

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Costumava ignorar as vozes de amigos e mesmo as que saíam de dentro de mim, gritando que isto não estava certo. Não queria perceber como a minha vontade não era levada em consideração e que minha opinião era nula. Como Alice em seu país das maravilhas, justificava seus atos pelo lado que me convinha.

Eu não podia falar o que pensava nas rodas de amigos porque eu não entendia do assunto. “Isso não é papo para você amor” ele dizia. E eu permanecia calada ouvindo as outras mulheres falarem, porque eram indelicadas. Onde já se viu se meter em conversa de homens?

Eu sempre fui a melhor que podia ser para ele. Não a melhor que devia ser para mim. Confiava em meu amor, genioso e inteligente, às vezes eu me sentia burra perto dele, porque na verdade ele fazia questão de me dizer isso. “Sua burra, cursou Universidade Federal para que? Já mandei ficar calada.”

Como meu príncipe era temperamental. Eu sempre pensava que a culpa era minha por iniciar uma discussão, bater de frente. Eu deveria ceder para o nosso bem, porque muitas vezes ele contrariado, me sacudia agressivamente machucando minha coluna. Eu ficava roxa em todos os lugares.

Entendia que nunca foi sua intenção me machucar, mas como era forte e musculoso não media sua força e isso era inevitável. Não era culpa dele, eu que provocava, além do mais, ele sempre se desculpava quando algo assim acontecia, era o que importava para mim. Beijava meus roxos e me abraçava forte, arrependido.

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Mesmo no dia em que me jogou para fora do carro, me atirando no chão junto com meus pertences, ele voltou rápido, foi tão sensível me carregando no colo até em casa e prometendo nunca mais fazer isso, se eu não o irritasse mais. Eu o deixava louco, ele dizia. E o problema era sempre eu.

Sentia-me envergonhada por fazer mal a um homem tão bom e trabalhador. E por falar em trabalho, após sua demissão, minha missão no relacionamento tornou-se mais importante. Eu custeava nossos encontros, as roupas novas dele para procurar emprego e as cervejas que ele bebia enquanto me esperava chegar do trabalho para fazer nosso jantar.

Eu custeei minha própria submissão. Fui trouxa, fui estúpida, fui fraca. Perdoava, perdoava, e pedia perdão, porque a gente se amava. Achava mesmo que amava e era amada. Mas um belo dia, acordei desse pesadelo. Não sei quando nem como aconteceu. Parei de justificar os seus atos abusivos e recuperei meu amor próprio.

Hoje, cheia de cicatrizes pelos vidros quebrados entendo que isso nunca foi amor. Deixei-me iludir por um conto de fadas machista e totalmente falso, que reduziu minha vida a vergonha e humilhação.

Passei tanto tempo perdoando e acreditando em alguém que só me manipulava que deixei de me enxergar como a mulher independente e cheia de atitude que costumava ser.

Meu príncipe virou sapo. Assim como de tantas outras mulheres que vivem por aí e nem perceberam ainda que o conto de fadas nunca foi real. Sapos são nojentos, frios e venenosos.

Nós mulheres temos que parar de distribuir beijos para permitir que o feitiço se desfaça. Para assim concebermos um mundo ideal, sem abusos, sem machismo, sem violência, com respeito mútuo e direitos iguais.

É preciso deixar claro que não somos simples “pererecas”, somos o que quisermos ser, e ninguém pode nos tirar esse direito, seja rei, seja plebeu, seja príncipe, ou principalmente esse asqueroso sapo. O reino é nosso, e a decisão também.




Publicitária por formação, aeromoça por opção e escritora por paixão. Virginiana, perfeccionista, mãe do Henri. Entre fraldas e mamadeiras, entre pousos e decolagens, entre artes e artimanhas, ela escreve. Escreve porque para ela, escrever é como respirar: indispensável à vida! É colunista do site Fãs da Psicanálise.

2 COMENTÁRIOS

  1. Nossa, me identifico super! Sair de um relacionamento abusivo é tão difícil, mas quando a gente consegue é um alívio tão grande! Só não podemos cair na armadilha de nos culparmos. É preciso seguir em frente e não se permitir se anular e ser tratada assim nunca mais.

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