Uma coisa que eu, infelizmente, observo muito: pessoas que melhoram sua situação financeira e sobem um ou alguns degraus da escada social parecem esquecer rapidamente que há pouco tempo também eram pobres e sofreram o mesmo desprezo que agora estão dispensando a quem é mais pobre que elas.

Já vi gente que saiu da favela e falava mal dos favelados e motorista de primeiro carro novo comprado em sessenta prestações rindo de quem esperava na chuva pelo ônibus, o mesmo ônibus que ele pegava para ir trabalhar, em um passado não muito remoto.

Tem gente frustrada em seu emprego por ser maltratada pelos patrões, mas que não perde a oportunidade de esnobar ela mesma outras pessoas, assim que se vê do outro lado (do lado “mais forte“), tratando mal vendedores em lojas, zeladores em prédios ou pedintes na rua.

Já é incompreensível ver gente rica de muito tempo tratando pobre como gente de segunda categoria, numa desumanidade que assusta. Isso já é difícil de entender, mas, agora, ver gente que conheceu a pobreza se vestindo de arrogância e prepotência para se achar melhor que outros que (ainda) não conseguiram sair da pobreza é que não dá para entender mesmo.

Parece que isso está enraizado na cabeça de nosso povo, essa mentalidade arcaica de que quem tem mais é mais, como se ter e ser fossem a mesma coisa. E quem quer ser mais necessita de alguém que seja menos, já que quem se compara precisa de uma referência e seria meio amargo alguém se comparar com quem tem mais que ele. Assim, a consequência lógica é rebaixar quem tem menos para se sentir mais elevado, enfeitando um pouco sua pobre existência.

Tem a história do Dr. Armando, que era advogado, mas não era doutor coisa nenhuma, porém, ele fazia questão de ser chamado assim. Um rapaz pobre do interior da Bahia, que foi para Salvador para estudar e que, para se formar, comeu o pão que o chifrudo amassou, limpou fossa e foi ajudante de pedreiro, serviu comilões no Habib’s na Praia de Piatã, foi placa de anúncio ambulante para os novos condomínios na Avenida Paralela e até picolé na praia ele vendeu.

Pois bem, esforçado ele foi, pisoteado também, e se formou em Direito aos troncos e barrancos. Com o canudo na mão, o Armandinho voltou para sua terra natal como Dr. Armando, o advogado, que, como dito, não era doutor, pois não tinha doutorado, mas que era cheio de doutorice e exigia que todos abaixo dele na hierarquia o tratassem dessa forma. Até de certos clientes ele exigia isso, numa arrogância sem fim. Agora, com um diploma que ele escondia na gaveta, pois suas notas não foram tão boas e ele se envergonhava disso, e um escritoriozinho perto do centro de uma cidade média de interior, ele se via flutuando numa nuvem, por cima dos mortais. Somente perante o juiz, o delegado ou os poderosos do lugar ele baixava a crista e parecia um menino nervoso que tinha feito algo errado.

O pior de tudo é que ele era colérico e tratava muito mal seus empregados, principalmente os domésticos, gritando com eles, os classificando de burros e preguiçosos e supondo que iriam morrer pobres, pois burrice e preguiça não levariam ninguém a lugar algum. E vivia dizendo que detestava pobreza.

Assustadora também era a passividade dos subalternos, que, calados, aceitavam as insultas do patrão. Por um lado, claro, eles eram dependentes, alguns até moravam em sua propriedade. Mas, por outro, seria bom ter mais coragem e impor limites ao novo rico que se comportava como um coronel de segunda categoria.

Mas nem precisamos de exemplos extremos como esse. Esse fenômeno acontece muitas vezes no dia-a-dia, quase despercebido, como aquele sujeito pobre que recebe um dinheiro extra, resolve ir jantar com a namorada num restaurante chique, com tudo que se tem direito, mas achando que tem o direito também de já entrar no restaurante tratando mal os garçons, sentindo-se rico por um momento e acreditando que “ser rico” implicaria também em tratar mal quem o serve.

Acredito que muita gente se comporta assim por não conhecer diferente. Quando ainda pobres, por terem sido explorados e maltratados e experimentado de perto a exclusão e os preconceitos contra a pobreza, aprenderam que é desse modo que a sociedade funciona: quem está em cima, pisa em quem está em baixo. E, agora, que conseguiram subir um pouco, eles também têm vontade de pisar. Se levo isso em consideração, até acho tal comportamento plausível. Mas plausível não quer dizer que seja bom.

Acho estranho e repudio qualquer ato que suponha a superioridade ou a inferioridade de quem quer que seja, mas, ao mesmo tempo, sei que todo efeito tem uma causa e que isso aí é efeito de alguma coisa. Não seria o efeito de um endurecimento de nossa sociedade, de uma mentalidade de consumo e de identificação social pelo que se possui, de dignidade comprada, onde quem tem pouco automaticamente vale menos? Não costumamos definir o sucesso de alguém pela riqueza que acumula? E ainda não fazemos a bobagem de aceitar essa ideia absurda como normalidade?

Penso que é essa distorção de valores, que afeta a sociedade como um todo, que faz com que também um pobre que emerge queira também pisar em outros para se sentir alguém.

Se queremos mudar isso, então seria essencial mudar exatamente essa mentalidade, essa forma estranha de convivência social que inventamos, mas que só serve para descaracterizar o lado humano de nossa sociedade.

Os pobres deixarão de tratar mal outros mais pobres no dia em que todos pararmos para perceber que é preciso bem mais que ter para ser e que poder material não torna ninguém melhor que ninguém. Os pobres aprenderão a respeitar outros mais pobres no dia em que eles mesmos perceberem que se é respeitado por ser quem é (um ser humano que tem uma dignidade inviolável!) e não pelo que se tem, já que ninguém aprende a respeitar se ele nunca foi respeitado.

Precisamos é retomar nossos valores e recuperar nossa humanidade, entendendo que a verdadeira superioridade não pode ser comprada e não se adquire através de riqueza material. A verdadeira superioridade nasce é dentro de nós. Uma pessoa verdadeiramente superior não é aquela que se acha melhor, mas sim que a entende que esse negócio de gente melhor ou pior não existe, tanto faz se rica ou pobre.




Blogueiro residente em Berlim. Apaixonado por palavras, viciado em escrever, sem luvas, tocando no assunto, porque gosta e porque precisa, sobre a vida e tudo que a toca. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

20 COMENTÁRIOS

    • É por aí. O Brasil tem como instituição maior a escravidão. O ódio ao pobre é uma versão moderna do ódio ao escravo. Leia Jessé Souza em a elite do atraso

  1. Olha um daqueles texto que dá um prazer imenso de ler, gostei muito e já tinha essa visão a muito tempo. Como expressei num comentário que fiz ao compartilhar esse texto no facebook, nascido na periferia de SP, tenho amigos(as) que crescemos juntos, eles se esforçaram alguns conquistaram o mundo, a sua autonomia financeira, mas nunca abrem mão de pedir uma pizza e sentar numa calçada nem tão limpa para bater aquele papo bacana sem a necessidade se mostrar melhor ou superior que qualquer um dos amigos que não tiveram a mesma (podemos dizer “sorte”)… Já por outro lado, tb conheço pessoas q só foi se formar em um determinado curso ou conseguir um emprego mais e manos que já nasceu um rei na barriga e que ñ dá nem mais gosto de estar perto, pois todos assuntos giram em torno de sí mesmos.
    Parabéns novamente belo texto…

  2. Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor, já bem disse Paulo Freire.
    Ademais, sobre o que você escreveu, recomendo “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro. As causas do que você aponta estão detalhadamente explicadas lá.

  3. É o complexo de vira lata explodindo.Assisti a uma entrevista de Osiris Silva na qual ele perguntou na academia sueca para premios Nobel: Por que o Brasil não possui prêmio Nobel?A resposta confidencial de um dos acadêmicos:Quando algum brasileiro é indicado as maiores obstruções vem de outros brasileiros

  4. Um dito antigo: Quer conhecer alguém? Dê-lhe poder.
    Pequenos poderes por vezes revelam grandes tiranos. Os recalques e as necessidades de demonstração desses poderes afloram e modificam pessoas antes subservientes que buscam a retaliação do sentimento anterior de “humilhação” – São os medíocres que em geral demandam essa “reparação” e tratam seus pares da forma como foram ou imaginaram serem tratados. Como que uma vingança por um mal impingido via de regra por si mesmo.

  5. Eu vejo pelo lado da ignorância. As pessoas pobres que se tornaram ricas, não tiveram e muitas não têm um conhecimento aprofundado sobre tais circunstâncias. São como papagaios, repetem aquilos que lhes aconteceram.Assim como os ricos fazem com os pobres.
    Pelo fato disso ser algo comum na nossa sociedade mesmo não sendo normal, muitos acabam por repetindo esses padrões.
    Acredito que o problema está enraizado mesmo é na mentalidade que foi citado no artigo. Essa ideia de que quem TEM é melhor de quem É, é uma mentalidade medíocre, porém infelizmente faz parte do senso comum, e as pessoas vão continuar também infelizmente, repetindo esses comportamentos.

  6. Ora, isso já está no libelo de La Boétie, que escreveu no século XVI, entre os 15 e 18 anos de idade, o discurso da escravidão consentida.ou servidão voluntária. Oprimidos se associam aos ricos e opressores para se distinguirem dos pobres, em vez de lutar por eles. Pobres deixam de se associar aos opressores quando adquirem consciência política. Só a formação política rompe com a servidão.

  7. – Desde que se alcance o objetivo almejado . Um bom pedreiro pode se sentir tão realizado quanto um habilidoso neuro-cirurgião . Afinal ! Ambos têm a mesma importância na sociedade.

  8. Existem vários aspectos que influenciam este comportamento. Acho que os principais são: a competição social. As pessoas aprendem desde cedo a competir. Quem é melhor, superior ou inferior, mais forte, mais bonito, mais inteligente, mais importante, mais interessante… e assim por diante, numa competição interminável. Outro aspecto é o desejo de auto-afirmação. As pessoas desejam ser valorizadas, parecer melhor do que realmente são. Um filósofo disse que desejamos brilhar uns para os outros. Então, às vezes, este desejo fica exacerbado e chega inconscientemente ao impulso de querer sobressair a qualquer custo, mesmo tendo que “pisar” nos outros. Parece que, infelizmente, as pessoas (não todas), que sofreram mais em situações ” inferiores” na sociedade quando acessam uma posição “superior”, (e aí aparece a situação do pobre novo-rico), são até mais propensas a competição e desejo de auto-afirmação.

  9. Em vez da competição a sociedade (todos nós) precisa valorizar mais a solidariedade. Em vez da auto-afirmação precisamos compreender, com clareza, que não somos superiores, nem inferiores a ninguém. Não somos iguais também. (Não resolve nada criar esta delusão também). Somos diferentes uns dos outros, entretanto únicos, e igualmente importantes, cada um na sua função, neste mundo.

  10. Chamo isso de “Síndrome de Capitão do Mato” ou ainda o Imbecil Empoderado. Do Sujeito que não valoriza e não entende sua própria história e contexto, é ressentido de si mesmo e assimila a ideologia opressora.

  11. Pra falar a verdade, hoje em dia vivemos em tempos tão podres que nem importa mais para o indivíduo “ter” ou “ser”, mas sim “parecer”, tanto é que, há não muito tempo atrás, eu li num link do Facebook que as pessoas estavam pagando “200 conto” para ALUGAR um I Phone só para exibir a “marca da maçazinha” na selfie da balada e eu, honestamente, do jeito que está o andar da carruagem, só vejo a coisa ir daqui pra pior.

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