O trabalho de Freud  “Totem e Tabu” permite-nos observar as evoluções de nossas forças instintivas (filogenéticas e biológicas) em suas sucedâneas, as forças pulsionais,  que são forças instintivas acrescidas de fatores afetivos, educativos, normativos e hábitos sociais. Essas forças pulsionais são, em sua essência, instintos “domesticados”, mais civilizados. Este trabalho possibilitou-me focalizar essas evoluções   através dos clãs onde nossos ancestrais (há uns 20 ou 30 mil anos atrás) passaram por  transformações, e, sobretudo, como as teriam vivido. Para minha teoria, aí estão as raízes do par-parental-amoroso, que se constituíram, bem mais tarde nos  pares dos futuros casamentos.

Alguns antropólogos e sociólogos admitem a era do comando matriarcal (ou matricial, denominação que prefiro) como uma das épocas mais pacíficas da história humana, o que faz sentido, dado ao fato de  que o temperamento da mulher é, via de regra,menos beligerante. As disputas entre os machos pelas fêmeas deveriam ocorrer em escala mínima, mas elas detinham também o poder de escolha sobre o macho com o qual copular, visando a saúde da prole, sob a égide do Instinto de Preservação da Espécie. É quase certo que as mulheres desta era matricial fossem também dotadas de ímpeto mais agressivo e tivessem alguma destreza no manejo de armas, quer para defesa, quer para ataque.

Estas habilidades seriam exercidas  em situações especiais, e delas poucos detalhes se conhece, além das lendas (ou existência factual) de tribos de mulheres guerreiras, como, por exemplo, as  amazonas e as  valquírias. Embora seja fato que houve e há mulheres guerreiras e mulheres-soldados ao longo do histórico humano, a agressividade beligerante é de índole mais própria do macho. Por isso prefiro o termo Matricial (que espelha a força de matriz, a fonte geradora de vida) ao Matriarcal (que espelha o comando pela força).

Aponto o fato de que a mulher vivenciou uma mudança enorme na passagem dos Clãs Matriciais para os clãs seguintes, os Clãs Patriarcais, pela perda do poder de comandar a tribo.   Manteve-se, porém, de posse de outros poderes femininos intrínsecos ao gênero, como o gestacional e o de identificar, já naquela época), qual era o pai de seu(s) filho(s), mesmo quando da vigência dos clãs posteriores, os Patriarcais e os Fraternos. Permito-me, então, uma leitura freudiana que, a meu entender, é passível de aplicabilidade à nossa pré-história.

Refletindo sobre o poder matricial da mulher, tive noção da sua relevância e concluí ser esta a maior base de sustentação da sua ipseidade (caráter particular de uma pessoa, que a distingue das demais, sua identificação essencial). Antes da leitura moderna atual, do início do séc..XX, sobre o poder fálico simbólico e a importância de ter-se ou não um pênis, há cerca de milhares de anos as mulheres já sabiam que detinham o poder de procriar, o que pode ser lido como um possível correspondente fálico (poder), nada pequeno. E elas sabiam disso.

A questão da castração simbólica não era ainda uma situação colocada para elas, mas, em outros termos, possivelmente sim, para os homens – talvez mais um sentimento de se sentirem excluídos da procriação. O poder matricial da mulher certamente seria, naquela época, não apenas comparável em grandeza ao fato de se ter um pênis; inclusive é possível que fosse maior. Mesmo após perder a chefia do clã, o que implicaria tornar-se politicamente com menos poder, era a mulher que ainda trazia vida à tribo, continuando a propiciar sua preservação.

Mais tarde, a partir dos clãs patriarcais, a mulher demonstrou determinação instintiva ao proteger seus filhos do autoritarismo do macho. Solução encontrada por sua maior capacidade de adaptação, mesmo porque emulada pelo ainda intenso instinto materno de proteção à prole, herdeira do poder matricial, graças a um mecanismo de deslocamento.

Considero factível uma atenuação histórica e transitória do poder matricial para um gestacional. Entretanto, o poder  matricial teria ficado como num limbo, num estado de latência, aguardando seu período de retorno, o que em  termos relativos,   aconteceu. No ocaso do período patriarcal e com o advento dos clãs fraternos, o macho – em vias de assumir-se como homem-pulsional – era algo limitado pela interdição das leis que passaram gradativamente a influir no comportamento dos indivíduos de uma tribo. As mulheres continuavam com seu poder gestacional graças à sua especificidade da concepção acontecer de modo real. Dentro desta hipótese, a essência do poder matricial, dotava a mulher de um valor que ultrapassa o ato de dar à luz , perpassando as vigências dos três clãs primevos. Continuava, como continua, com o poder de trazer mais vidas humanas à comunidade.

Penso que o instinto sexual e a capacidade matricial femininos contribuíram  para o surgimento da Pulsão Materna mais rapidamente  do  que a Pulsão Paterna nos homens, uma vez que esta surge emulada por aquela, na maioria dos casos. Daí, a hipótese de que a mulher já desejasse procriar, antes que o homem sequer soubesse de sua participação para tanto, torna-se muito mais clara. A ela também coube a possibilidade de escolher de preferência o homem que seria seu companheiro. A  necessidade intensa de  procriar e de  se sentir  amada e acolhida pelo seu homem, é fruto derivado e compensatório de saber dividir o outrora pleno poder matricial. À sua época a mulher matricial, muito provavelmente, se doava mais do que seu sucessor na chefia dos clãs, que  se apossava do poder e tomava mais do que doava. Penso que, até hoje,  o homem tem mais dificuldades em dividir seu poder do que a mulher.

Convido o leitor a uma grande viagem no tempo, partindo imaginariamente dos primórdios da civilização humana, da sua pré-história (a partir do Homo Sapiens, até  nossa época atual.) Guardemos em mente o guia de viagem, o texto de Freud, Totem e Tabu.

O primeiro bebê veio à luz e já trazia consigo a angústia do desamparo e a decorrente dos medos provocados pelo meio ambiente, necessitando de proteção para sua sobrevivência. Vindo de dentro da mulher, era o colo desta o seu principal abrigo. Outras angústias viriam, mas frutos da evolução civilizatória e das leis subsequentes às que passaram a existir a partir dos tabus. Acredito ainda que, nessa época, os machos admirassem, venerassem e até deificassem as mulheres. Quem sabe até, no meio de tão nobres sentimentos, também as invejassem, no que até poderiam ter antecipado a reflexão freudiana e seriam eles a invejá-las pelo poder concepcional exclusivo das fêmeas.

A mulher primitiva já percebia ou sentia seus períodos férteis. Com o advento dos clãs fraternos, a mulher lapidou sua capacidade já pré-existente, optando ter como companheiro o mais admirado, desejado e querido. Com a evolução dos clãs, tais instintos devem gradativamente ter se transformando em pulsões materna e paterna. Nos casais jovens atuais, o desejo de procriar, na maioria das vezes, ainda parte da mulher, que influencia tal desejo no homem.  Tais fatos são, ao meu ver , resquícios do que acontecia nas relações de nosso passados primevos.

Outras inferências podem ser feitas à luz das etimologias das palavras matrimônio e patrimônio. Não por acaso a primeira delas vem de matri (da mãe), palavra latina do mesmo domínio de mater (mãe), que originou também matriz, referentes a gestar, portanto, do mesmo domínio. Já patrimônio, por seu turno, tem mais de imediato uma preocupação quanto à segurança da futura família, o patrimônio, que pertence ao mesmo domínio de patri (do pai), e de pater (pai). Caracteriza projetivamente a construção de seu habitáculo, visando à segurança. Com a evolução dos hábitos, acabaram por se integrar no ato do casamento. O matrimônio, contudo, é sinônimo de casamento e, em que pese continuar essencial em sua etimologia, avançou em significados e se transpõe na gruta, na cabana, na morada que acolhe o homem e sua família. Inclusive, a própria morada não deixa de ter uma forte influência da fêmina, pelo caráter uterino da casa. O homem alberga sua mulher e descendentes no útero que sabe construir, sua  casa, sua morada, fruto direto de suas pulsões masculina e paterna.

 




Médico Psiquiatra e Psicanalista. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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