(Subtítulo: Um ensaio sobre relacionamentos)

Relacionamentos são complicados e podem alcançar um alto grau de complexidade quando incorporados em nosso cotidiano. Vivemos em um campo aberto de relações, logo somos rotineiramente testados e desafiados pelos nossos encontros e desencontros com o outro – outro esse que nos convoca para cena do laço social. Laço social esse que, por vezes, torna-se responsável por um viés de sofrimento.

Freud traz a luz o tema das dificuldades do convívio social em um dos seus textos de renome (O mal-estar na civilização) e nos convida a refletir sobre como nossas relações são também uma condição de sofrimento. Eis que, partindo dessa premissa, constata-se que a sociedade que conduz o laço social é a mesma que provoca o adoecimento do humano. Somos seres ocasionalmente fadados a adoecer e sofrer em nossos vínculos amorosos. Sujeitos potencialmente frustrados.

Diante de todo o sofrimento oferecido por uma sociedade coercitiva – que tira-nos o direito das realizações pulsionais – temos o amor; o amor nasce como um sintoma justamente para tentar dar conta do mal-estar das nossas relações: amamos para não adoecer. Com isso dito, podemos pontuar que os relacionamentos que estabelecemos podem ser uma fonte de sofrimento, tanto quanto uma fonte de bem-estar. Repito: amamos para não adoecer. Esse é o papel social do amor.

Freud destaca também o que ele chama de sentimento oceânico, que se caracterizaria por uma sensação de pertencimento ao mundo de forma quase que delirante do homem. Diante toda nossa insignificância no cosmos, costumamos construir uma série de situações que nos permitem pertencer a algo (ou a alguém) nem que seja de maneira fantasiada; efêmera. É um processo natural que utilizamos para – também – lidar com o estar-no-mundo.

Tal sentimento seria, pensando em termos de análise, uma derivação de nosso sentimento de onipresença enquanto crianças? Talvez. O que é certo é que carregaremos pelo resto das nossas vidas o fardo de nossos devaneios infantis e são a partir desses fardos que pautamos nossa maneira de se relacionar com o mundo.

Enquanto criança somos sujeitos guiados por um imaginário imensurável, gostamos de flertar com nossa imaginação, e não deixamos tais características de lado quando adultos. E, veja, toda criança é fadada a lidar com processos que as frustram e, com isso, descobrir que a vida é feita de grandes parcelas de frustrações.

As coisas não acontecem de maneira planejada e ocorre independente do nosso gostar. Não temos o controle de selecionar apenas o bônus do viver, temos que lidar com o ônus também.  A gente não está – e nunca esteve – no controle da situação. Nem tudo vai ocorrer como gostaríamos que fosse.  E não há problema em não assumir o volante, está tudo bem. É saudável entender que o preço da existência é pago por uma impossibilidade de satisfação total.

A literatura psicanalítica nos mostra que não existe satisfação completa; toda e qualquer satisfação que obtivermos ao longo de nossa vida será APENAS parcial. É isso mesmo, a existência não permite a completude, então damos nosso jeitinho de viver a vida com migalhas de satisfações. O que não quer dizer que as coisas, por mais que não ocorram de acordo com nosso favoritismo, não sejam minimamente boas.

É aí que surge a célebre frase de Jacques Lacan: a relação sexual não existe.

Bom, quando Lacan nos coloca frente a essa afirmação, ele nos posiciona também frente ao fato de que a vida é feita, em seu âmago, por um desencaixe estrutural.

Com isso quero dizer que essa polêmica frase do psicanalista francês está para além do ato sexual em si, ela se coloca também no nível da palavra, já que essa não é suficiente para representar tudo. A palavra se equivoca, é incompleta, produz perdas – o próprio discurso não produz nenhum sentido, mas sim perdas: o discurso implica a perca da coisa na tentativa de representa-la. Ou seja, não temos nenhum tipo de acesso ao pleno de nós, imagine do outro.

Ora, então agora sabemos o motivo da relação sexual não existir. O ato sexual sim, ele existe; já a relação não – não existe pois, estruturalmente, não podemos obter uma satisfação total em qualquer que seja a relação que construímos com o outro. Até onde isso é um problema? Na verdade, penso ser isso algo da ordem do benéfico, pois a totalidade nos remete pra alguma coisa já cristalizada por natureza, o que necessariamente não estaria disposto pra mudanças. Quando assumimos uma incompletude – consequentemente uma falta – estamos dizendo que, por mais que essa nos acarrete uma eterna angústia, em outro ponto, pode ser justamente essa lacuna estrutural que permita-nos mudar, se reinventar, se recriar enquanto sujeito, leva-nos a conhecer a liberdade.

Não é difícil percebemos em nosso cotidiano o quanto nos esforçamos e alimentamos um delírio de satisfazer o parceiro por completo e atribuímos ao outro a enfadonha missão de nos satisfazer. Tolice!

É preciso parar, respirar e reconhecer nosso limite, pois isso é um exercício saudável, porém um exercício difícil. Reconhecer limites é uma tarefa dolorosa, mas libertadora, pois quando se teoriza limites estamos pressupondo a existência de um espaço vazio posterior, espaços que podem vir a servir de crescimento pessoal. Espaços são importantes; são fundamentais; são necessários para que possamos errar; se equivocar; saber suportar o encontro e, acima de tudo, reconhecermo-nos como seres faltosos.

Nossa vida é pautada por desencontros, pois não há relação sexual, como disse Lacan. Uma vida que se estrutura a partir de uma falta – um lugar vazio – que nos dá espaço para buscarmos em nossas relações algo que nos complete nem que seja de maneira imaginária, mas que possamos sempre aproveitar esses pequenos momentos de satisfações parciais.

O que Lacan nos ensina é que quando não se há encaixe nas relações, só nos resta uma coisa: o deslizamento.

Deslizar me faz lembrar movimento, e o que desejo é que nossas relações sejam assim: com espaços, imperfeitas, incompletas, pois, quando não há encaixe o que nos resta é o movimento.

Para um sorriso.

Para um gesto.

Para uma dança.




Estudante de Psicologia e amante da literatura. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

5 COMENTÁRIOS

  1. Esse texto é um dos melhores que já li nos últimos anos! Sintetiza muitas das minhas percepções e gostaria de parabenizar o autor pela coerência das ideias! Um dos meus preferidos textos desta página, certamente!

  2. Isso aqui é tão profundo e real ”Diante toda nossa insignificância no cosmos, costumamos construir uma série de situações que nos permitem pertencer a algo (ou a alguém) nem que seja de maneira fantasiada; efêmera. É um processo natural que utilizamos para – também – lidar com o estar-no-mundo.” Real e melancólico para mim. Haha

    ”Ora, então agora sabemos o motivo da relação sexual não existir. O ato sexual sim, ele existe; já a relação não – não existe pois, estruturalmente, não podemos obter uma satisfação total em qualquer que seja a relação que construímos com o outro.”

    Então não podemos ter uma satisfação total porque sempre haverá um espaço para imperfeições? Sempre haverá uma falta =/
    Mas relação é sinônimo de satisfação ?

    • Presumo que entra a “tese” de que não haveria traição, quando imaginemos a atração indo além do aspecto físico, mas inteligência, profissional de sucesso em sua área e conversas convergentes: assuntos em comum! Não por acaso, são motivos alegados para a separação: a rotina diária doméstica associada ao comportamento e temperamento de cada um!

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