Comportamento

Síndrome do Super Homem

Quem não gosta de sorvete? Eu amo. A textura, a infinidade de sabores, o geladinho, o aroma… Ahhh, sorvete é maravilhoso. Mas como a vida não é justa, desenvolvi há alguns anos uma condição chamada intolerância a lactose. Lactose é o açúcar do leite e, no meu caso, sou incapaz de digeri-lo.

Isso não fez com que eu parasse de tomar sorvete. Na verdade, apenas adicionei uma enzima digestiva ao processo e comia bolas e mais bolas de sorvete, com calda, confeitos e tudo o mais. Afinal, era só mais um sabor, só mais brigadeiro. Obviamente não funcionava e eu passava mal.

Qualquer observador poderia perceber que esse é um comportamento no mínimo irresponsável e até idiota. Quem, em sã consciência, comeria algo que imediatamente causaria dano? Bom… Concordo com quem pensa dessa maneira, eu mesma fiz essa reflexão várias vezes, mas isso não impedia de continuar fazendo a mesma coisa.

A verdade é que eu não sou a única. Somos todos, em algum aspecto, superpoderosos, ou achamos que somos, a síndrome do Super Homem. “Eu dou conta”, “Sou forte”, “se eu disse que posso, é porque posso”, “nada me incomoda”.

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Essas frases estão em todos os lugares e são ditas o tempo todo, por todo mundo (sim, frases generalizantes!). Aprendemos desde pequenos a dar conta de tudo, ser independentes, multitarefas, superar nossos limites, ir além. Isso é muito bonito e fica ótimo como título de qualquer livro de autoajuda, a verdade, no entanto, é que se trata do mesmo que eu fazia com o sorvete.

Limites existem, quando criados da maneira correta, para proteção: os parapeitos dos prédios, as faixas nas rodovias, as telas nas nossas janelas. Nós utilizamos coisas com o intuito de nos proteger de ameças, respectivamente: quedas, acidentes e mosquitos. Nunca vi ninguém argumentando contra esses mecanismos. Eles são necessários. O problema existe quando o limite é entendido como um desafio. Crianças são especialistas nisso. Basta dizer-lhes um não, que imediatamente tem como objetivo principal transgredi-lo.

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Na nossa vida psíquica, vivemos como rebeldes, quebrando limites o tempo todo. Quem precisa dormir? Quem precisa comer? Quem precisa dizer não? Quem precisa se afastar de influências negativas? Quem precisa conversar sobre o que incomoda? Quem precisa de paz? Você! Eu! Todo mundo! Confundimos desafios com desrespeito, superação com abuso próprio.

A vida é feita de sacrifícios, para o alcance de sonhos, precisamos abrir mão de várias coisas, mas trazemos esse principio para aspectos da vida que não exigem essa atitude. Aguentamos tudo.

O problema é depois. Os consultórios médicos e psicológicos, arrisco dizer até o de outras áreas da saúde estão cheios de pessoas que extrapolaram todos os limites e estão exaustas, doentes, a ponto de explodir.

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Em nossa defesa, ignorar os limites nem sempre é um processo consciente. Não fomos ensinados a descobri-los. Em algumas situações sabemos que algo incomoda quando o mal já foi causado. Porém, em outros momentos, e sobre esses a que estou me referindo, achamos que podemos dar conta de mais um pouco.

Confesso que ainda não parei de tomar sorvete, mas reduzi significantemente sua quantidade e a frequência de consumo. Sei que ainda não é ideal, mas estou aprendendo a lidar com algo que não me faz bem e espero que no futuro, abandone totalmente. Sei que vou sentir falta, porém esse é um limite além do meu poder de ação. É indiscutível.

É essencial que conheçamos nossos limites. Afinal, até o super-homem tem a kriptonita.

Liediani Medeiros

Psicóloga. Colunista do site Fãs da Psicanálise.

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