Estar à vontade significa não estar sujeito às restrições do tempo.

Hoje, temos até que nos planejar para ficar à vontade, já percebeu? A liberdade de seguir nosso ritmo natural tornou-se um luxo. Nossos momentos de lazer não passam de medidas paliativas para aliviar a tensão — como o banho de sol numa prisão.

O ritmo da vida moderna segue acelerando. Nos negócios, criamos o estoque just-in-time, as comunicações instantâneas e as viagens bate-volta. Os dias são cada vez mais programados, minuto a minuto, chegando até a infância, a começar pela imposição da agenda hospitalar aos recém-nascidos.

Time management e multitasking, com a ajuda de smartphones e tablets, se tornaram habilidades essenciais ao lidar com o frenesi cotidiano. Buscamos manter tudo sob controle e, assim, adquirimos mais e mais soluções tecnológicas para lidar com problemas causados pelo próprio controle — irônico, não?

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Enquanto a vida adulta segue o ritmo cada vez mais rápido das máquinas, aquelas tardes intermináveis da infância de outrora dão lugar ao confinamento planejado das escolas e uma enxurrada de atividades extra curriculares. Pela primeira vez na história, crianças estão ocupadas demais para brincar.

“Ocupadas demais para brincar” — por favor, reflita sobre a tragédia dessa afirmação. Novamente, as causas têm origem na ansiedade pela sobrevivência. Brincar é um luxo, uma futilidade relegada aos intervalos da programação de atividades produtivas, educacionais e de desenvolvimento.

As exigências competitivas da vida adulta determinam que não se pode perder tempo com brincadeiras, pois cada momento brincando é um momento no qual seu filho poderia estar se qualificando, se preparando para o futuro. Afinal, as brincadeiras da fase adulta são limitadas ao nosso “tempo livre”, e a infância é uma preparação para a fase adulta, certo? Então procuramos difundir bons “hábitos de estudo” e uma forte ética de trabalho em nossos filhos, além de um senso de responsabilidade para que não coloquem as brincadeiras, o prazer e a diversão em primeiro lugar.

Caso contrário, que tipo de adulto poderiam se tornar? Provavelmente, um adulto indisciplinado que não consegue manter um emprego das 8h às 17h, sem paciência para trabalhos entediantes, degradantes e desagradáveis — exatamente o tipo de trabalho que boa parte da população aceita, infelizmente, por necessidade. Portanto a escola vem primeiro, depois a lição de casa, então as aulas de inglês e, finalmente, a escolinha de futebol ou o ballet. Só então, se ainda sobrar algum tempo, eles podem brincar.

Obrigar crianças pequenas, ainda espontâneas e curiosas, a respeitar uma agenda adulta requer apenas uma coisa: força — mas não se engane, as crianças resistem à programação. Quando querem fazer algo, o querem imediatamente, e por quanto tempo julgarem necessário.

Se não estivéssemos sempre com pressa, nunca perderíamos a paciência. Quando abandonamos esse impulso de controlar o tempo, raramente perdemos a paciência com crianças ou idosos, não por nos tornarmos “santos”, mas simplesmente porque não há mais motivo.

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Então deixe que tomem quanto tempo quiserem. Afinal, por que não deixaríamos? Só se estivéssemos apressados, como de costume na vida moderna. Estamos sempre pensando no próximo item da lista de tarefas, constantemente nos privando de aproveitar plenamente o que estamos fazendo, aqui e agora.

As constantes interrupções no ritmo natural das brincadeiras infantis, agora relegadas aos intervalos de uma agenda imposta, nos condicionam a uma vida adulta de prazeres furtivos e apressados.

A glorificação da “correria” e da “agenda lotada”, tão endêmica na vida moderna, é apenas uma de suas características, e certamente não será abolida pela próxima geração de aparelhos inteligentes. Estar ocupado é não estar livre, é ter o seu tempo limitado, é estar sujeito às urgências sem fim do cotidiano. É o resultado natural da aculturação da infância, que sufoca nossa vida com ameaças onipresentes de privação — seja de afeto, de aprovação ou de conforto. A vida adulta nos deixa profundamente condicionados contra a diversão.

Ao dizer que estamos “ocupados demais”, o que realmente queremos dizer? Que precisamos fazer outras coisas, seguindo prioridades ditadas pela sobrevivência, ou ainda, que não temos a liberdade de fazer o que queremos.

Repetimos cegamente, quase sem perceber: “Não se deve colocar a diversão antes do trabalho”. Qualquer inversão nessa ordem já é capaz de gerar uma certa insegurança, um leve receio de perder o emprego, ir à falência ou terminar no olho da rua.

A ideia de que a diversão também pode ser produtiva, sem ter que direcioná-la conscientemente à produtividade, raramente nos ocorre; se o faz, logo relegamos ao reino daqueles poucos felizardos, artistas ou gênios que têm a sorte de fazer o que amam.

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Na verdade, a lógica está invertida: genialidade é o resultado de se fazer o que ama, não um pré-requisito. O problema, claro, é descobrir o que se ama. É para isso que deveria servir a infância, mas a nossa cultura tem distorcido esse propósito.

Quando nos sentimos tão perdidos a ponto de não descobrir o que amamos, a única saída é deixar de fazer o que não amamos: simplesmente não fazer “nada” por um tempo. Não sou um grande fã da bíblia, mas essa é a mensagem implícita na história do Grande Êxodo. Após a escravidão, os filhos de Israel tiveram que vagar por 40 anos no deserto antes de encontrar a terra prometida. Analogamente, precisamos derrubar a “ditadura da correria” e nos permitir vagar por algum tempo para, enfim, encontrar nosso propósito — é o chamado “período sabático”.

A maior ironia, e o mais grave indício de escravidão, é a nossa aversão a longos períodos de tempo livre. O verdadeiro escravo é condicionado a temer a liberdade. Assim, preenchemos nosso tempo livre com “passatempos”, numa busca constante por entretenimento. A ansiedade que permeia tanto da vida moderna, agora também invade nossos momentos de lazer, nos confinando a uma lista interminável de tarefas até mesmo nas férias.

Aqui, vale falar um pouco sobre a nossa relação com o tempo. A mensuração do tempo, especialmente de modo linear, implica no conceito de um futuro abstrato, gerando uma outra fonte fundamental de ansiedade e insegurança. Temos sempre que nos preparar para alguma coisa e, portanto, há sempre um motivo para estarmos presentes pela metade no aqui e agora.

Quando sacrificamos o presente pelo futuro, o fazemos sob os interesses da mesma “necessidade” que invocamos quando “não podemos nos dar ao luxo”. No contexto de riqueza das sociedades primitivas, em que tudo era proporcionado em abundância pela natureza, não havia necessidade de se planejar para o futuro. Numa sociedade agrícola, porém, essa despreocupação pode ser fatal. Surge então o paradigma de “plantar agora para colher mais tarde” que ainda domina a mente moderna.

Sempre temos algo a fazer; algo que possa reforçar nossos próprios interesses, melhorar nossa realidade e contribuir para a garantia de um futuro melhor — a eterna busca pela segurança. Ao encarar a vida como uma “luta pela sobrevivência”, as coisas nunca estarão boas o bastante. Assim, o presente se torna escravo do futuro. Essa é a essência da mentalidade da agricultura, na qual o trabalho de hoje nos leva à colheita de amanhã.

Um fenômeno similar também ocorre coletivamente: sem as abstrações de futuro e passado, não haveria ideia de “progresso”. Por outro lado, sem um conceito de progresso, não há muito o que fazer com o tempo. O acúmulo de cultura e tecnologia define um vetor temporal com origem na época primitiva.

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No início dessa ascensão exponencial, quando as mudanças eram lentas, só havia uma consciência rudimentar do tempo. À medida que tais mudanças se aceleraram e progrediram sobre si mesmas, uma percepção mais elaborada do tempo também se consolidou. É ingênuo pensar que o tempo foi uma daquelas invenções que poderíamos ter evitado se fôssemos mais sábios. Pelo contrário, trata-se de um produto inevitável dos avanços em linguagem, números e tecnologia, cada qual progredindo sobre si mesmo e os demais. A linguagem escrita, por exemplo, originalmente utilizada para fins de registro, permitiu a contextualização linear do tempo e a concepção de história, na medida em que as palavras deixavam de se limitar ao momento em questão.

A tecnologia que conhecemos, além de baseada no tempo linear, está intimamente atrelada à velocidade, à conveniência, à eficiência e ao progresso. Isso nos leva a questionar se ainda é possível alguma outra concepção de tempo — difícil imaginar, não é?

Qualquer tecnologia cumulativa acaba por definir o progresso e, portanto, o tempo linear. No entanto, o progresso não precisa ser artificial ou destrutivo. Afinal, a vida evoluiu de forma cada vez mais complexa ao longo de 4 bilhões de anos, entrando em crise apenas nos últimos milênios. Isso sugere um tipo diferente de tecnologia, que busca explicitamente restaurar e se equilibrar com os padrões da natureza.

Imagino que essa nova tecnologia encontrará inspiração na regularidade dos processos naturais; buscará a sintonização, e não a conquista; se ocupará não com o controle, mas com a simplicidade e a beleza. Imagino algo diferente, que não se baseie na separação com a natureza, mas que seja uma extensão orgânica da mesma, resgatando a noção de uma vida atemporal, na qual a mensuração linear do tempo seja apenas um outro instrumento lúdico da criatividade.




Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP). É colunista do site Fãs da Psicanálise.

1 COMENTÁRIO

  1. Prezado Bruno: Interessante o ponto de vista apresentado, mas, concorre o efeito da ausência dos pais no dia a dia da criança e da mídia (televisão e jogos eletrônicos) sobre a educação, tendo levado à evolução dessa geração de “nem nem”.
    Escreva, por favor, sobre como ser equilibrado, porém evitar essa tragédia.
    Conheço jovens na faixa dos 30 anos, formados, desempregados, solteiros, vivem de forma fútil, apresentam características depressivas e desinteresse social e perdem noites de sono diante de games, matando personagens numa rotina que vai muito além da violência real. Nos dá até medo.

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