Meu Deus, como andamos chatos, dei-me conta outro dia.

Não paramos de reclamar.

Muitas vezes com razão: os impostos, o custo de vida, o desemprego, a violência, a prolongada adolescência dos filhos, a súbita falsidade de alguém em quem confiávamos tanto, a velhice complicada dos pais, a pouca autoridade das autoridades, a nossa própria indecisão.

As rápidas mudanças na sociedade, alguns ainda tentando arrastar o cadáver dos valores que precisam ser mudados, outros tentando impor a anarquia quando a gente devia era renovar, não bagunçar.

Pensei que uma das coisas que andam ficando raras é a alegria, e comentei isso. Alguém arqueou uma sobrancelha:

– Alegria? A palavra está até com cheiro de mofo… Tanta coisa grave acontecendo, tanta tragédia, e você fala em alegria?

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Pois comecei a me entusiasmar com a ideia, e provocativamente fui contando nos dedos os motivos que deveriam levar a que o grupo se alegrasse: a lareira crepitava na noite fria, uma amizade generosa circulava entre nós, três bebês dormiam ali perto, na sala ao lado, ouviam-se risadas e, apesar de sermos na pequena roda mais ou menos calejados pelas perdas da vida, tínhamos os nossos ganhos em experiência, amores, conhecimento, esperança.

Nenhum de nós desistira da jornada. Nenhum de nós era um malfeitor, um ser humano desprezível, ao contrário: a gente estava na luta, tentando ser decente, tentando superar os próprios limites.

Havia marcas da passagem do tempo em todos os rostos: ninguém se fizera deformar pelo fanatismo da juventude eterna, mas todos se gostavam o suficiente para não se deixar cair feito um trapo velho.

Olhei em torno e gostei de nós: ali se viam belos cabelos pintados e belos cabelos brancos, rostos interessantes que tinham visto muita coisa, bocas marcadas que haviam dado muitas risadas e pronunciado palavras amorosas, mas também falado coisas duras, silenciado quem sabe ternuras difíceis, ocultado queixas que deveriam ter sido lançadas.

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Mãos que tinham segurado bebês, conduzido crianças, confortado adolescentes, cuidado de velhos doentes, fechado pálpebras, dirigido automóveis, segurado ombros, fendido ondas, tapado o rosto em pranto solitário – quantas vezes?

Éramos tão humanos, tão desvalidos e tão guerreiros, o pequeno grupo de amigos diante de uma lareira na noite fria, como centenas, milhares de outros, homens, mulheres, crianças, entre os dois mistérios do nascer e do morrer.

Repeti a minha pequena heresia:

– Eu acho que uma das coisas que andam faltando, além de emprego, decência e tanta coisa mais, é alegria. A gente se diverte pouco. Andamos com pouco bom humor.

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Erico Verissimo, velho amigo amado, uma de minhas mais duras perdas, me disse quando eu era muito jovem: “Lya, em certos momentos o que nos salva nem é o amor, é o humor”.

Um riso bom ou um sorriso terno em meio a toda a crueldade, falsidade, hipocrisia, violência de acusações abjetas, de calúnias vis, de corrupção escandalosa, de desagregação familiar melancólica, de mentira secreta e venenosa podem nos confortar e devolver a esperança.

(Autura: Lya Luft – escritora)
 (Fonte: Revista Veja, 28/07/2004)




A busca da homeostase através da psicanálise e suas respostas através do amor ao próximo.

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