No final do século 18, a hipocondria intrigava médicos e filósofos, como um verdadeiro desafio para o entendimento da mente humana. Como é possível que alguém acredite firmemente estar doente, sem que nada possa demover a pessoa deste sentimento, mesmo os melhores médicos e especialistas?

O termo hipocondria aparece na medicina por volta de 1398 para designar a doença das “falsas costelas”, mas também um paciente triste, caprichoso, sempre inquieto com sua saúde. Uma terceira característica notada entre os hipocondríacos é que eles frequentemente apresentam um tipo de personalidade excêntrica e extravagante, indiferente aos outros ou altamente sugestionável.

Em função da tristeza, os hipocondríacos foram considerados durante muito tempo um subtipo da melancolia. Acredita-se que a expansão da hipocondria durante o século 18 possa ser atribuída à expansão do direito à saúde e segurança do corpo, conjuntamente com o desenvolvimento da medicina como um saber científico investido de crescente autoridade[1]. Em 1673, Moliére estreava sua última peça, conhecida como o “Doente Imaginário”, na qual Argan, um pai velho, rico e hipocondríaco, tenta casar sua filha com o filho de um médico para com isso obter tratamento gratuito e infinito. Enquanto isso o médico aproveita-se de Argan, tirando seu dinheiro em troca de palavras vazias e diagnósticos erráticos.

Ele é salvo de si mesmo, pela ação de seu irmão e da governanta que combinam a seguinte prova: ele fingirá que está morto e desta maneira poderá perceber as tramas daqueles que o tentam enganar. Vale a pena lembrar do truque de Molière em tempos de coronavírus. Primeiro façamos uma inspeção criteriosa em torno daqueles que vão querer se aproveitar da doença alheia e mais especificamente do temor que a doença levanta nas pessoas. Na cabeceira deste movimento estarão os negacionistas. Eles dirão que os dados estão exagerados, que o caso todo é uma fantasia da mídia e que no fundo existe algum tipo de conspiração por trás da epidemia.

Não contentes com isso, eles tenderão a criar para si um manto de invulnerabilidade dizendo que nada os afetará pois afinal foram escolhidos por algum tipo de proteção mágica para não serem contagiados. Desta forma estarão livres para se aproveitar do medo alheio vendendo proteção barata em nome da ignorância.

Eles são como nosso Brás Cubas, herói de Machado de Assis: O principal deles foi o divino emplastro Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que eu apanhei. Divino emplastro, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras genuína e direta inspiração dos céus. O acaso determinou o contrário; e vos ficais eternamente hipocondríacos. Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento […]. Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.” [2]

Salientemos a atitude grandiosa que cerca a invenção do tal remédio pelo protagonista. Ele vai curar a hipocondria e se tornar muito famoso com isso. Mas ao procurar os céus da fama ele encontra sua própria ruína. A sabedoria literária informa algo profundamente clínico aqui. A sua idealização de si mesmo fez com que Brás Cubas negasse a pneumonia real que nele se infiltrava. Seu emplastro curou a hipocondria, mas tornou-o displicente com relação a sua saúde.

Moral da história: se ficarmos completamente curados de nossa hipocondria nos tornaremos tolos. Se nos libertarmos da função benéfica do medo de doenças, não nos dedicaremos a enfrentá-las com cuidado e inteligência, com apuro, informação e disciplina. Na verdade, os que sofrem do Complexo de Brás Cubas são como os antigos tolos, que parecem corajosos, mas na verdade são incapazes de usar o medo como instância de transformação da realidade e de prevenção em relação ao perigo.

Contudo, os verdadeiros hipocondríacos não são como Brás Cubas, que tem apenas uma patologia do medo e da superestimação de si. Eles são antes de tudo tristes, pois a causa de seu sofrimento nunca é propriamente reconhecida pelos outros a quem apelam. Nossa cultura tende a punir os hipocondríacos como se eles fossem pessoas que sofrem de uma hemorragia de atenção, requerendo mais e mais cuidados onde não há nada a fazer.

Não me peçam para dizer o que um verdadeiro hipocondríaco sente quando examina seu corpo dia e noite, quando se aflige com pequenas e infinitamente desagradáveis sensações, quando se perturba com as mudanças de ritmos cardíacos, das alterações de sono ou alimentação, quando pensa sem parar que aquela protuberância em sua pele ou aquela dissimetria em seus seios pode ser o sinal certo do pior.

Um hipocondríaco não está fingindo que tem uma doença, ele realmente sofre com isso. Dizer para esta pessoa que isso tudo é psicológico é simplesmente aviltante. Na saga hipocondríaca a indeterminação das causas é apenas o pretexto para mais exames, mais medicamentos, mais atitudes preventivas. Quanto mais o paciente e seus familiares, a esta altura em geral exaustos, cedem nesta direção pior fica. A solidão vivida por estas pessoas é infernal. Solidão que torna seu corpo, literalmente, um corpo estranho e um inimigo íntimo a ser severamente vigiado.

Até 2013 a hipocondria era considerada um transtorno somatoforme. Ao lado dos transtorno conversivo, dismórfico corporal (no qual a imagem de si se altera brutalmente), do somatizador, da dor crônica (fibromialgia) e próxima dos transtornos factícios (como a síndrome de Münchausen, na qual a pessoa deliberadamente cria sintomas em si mesma, ingerindo venenos, cortando-se ou expondo-se a condições mórbidas) a hipocondria é um quadro temido pelos clínicos, pois melhora mas não passa nem com medicação nem psicoterapia, apesar de piorar sem qualquer uma das duas. A hipocondria pode ser um sintoma secundário em muitos quadros de linhagem ansiosa, depressiva ou paranoica. Seu tratamento.

Seu tratamento é difícil e sistêmico, ou seja, debelando-se a depressão a hipocondria tende a melhorar indiretamente. Ela é descrita por muitos como um tipo de delírio, porque ninguém consegue realmente convencer um hipocondríaco de que o que ele está sentido e vivendo pode ser corrigido cognitivamente. O tratamento da hipocondria deve enfrentar a relação entre a experiência do corpo, e principalmente dos prazeres, com a sua inscrição ou tramitação psíquica. Tipicamente um hipocondríaco piora diante de uma grande satisfação, como se seu “aparelho” de prazer estivesse limitado a um nível muito baixo e muito sensível de funcionamento.

O terceiro traço da hipocondria diz respeito a sua sugestionabilidade. Ouvir notícias sobre uma nova doença ou epidemia é ao mesmo tempo algo insuportável e compulsivamente atraente. Da informação para a preocupação parece haver uma passagem direta. Ao que tudo indica a hipocondria tem uma certa facilidade para captar e traduzir a atmosfera social de insegurança ou pessimismo, como se aquilo que é muito complexo e indeterminado para receber um nome na realidade material se transformasse em um enigma de nomeação para a realidade psíquica. Entre 1878 e 1914 quase 17% dos internos suíços tinham ideias hipocondríacas.

Durante a guerra esse percentual subiu para 24%, caindo nos anos subsequentes. Na Escócia a diferença vai de 7% para 29%[3]. A capacidade de se influenciar com notícias e reportagens médicas ou epidemiológicas parece estar diretamente relacionada com o pertencimento e a nomeação do mal-estar. Ela explora a atitude de extremo reconhecimento e submissão à ordem médica, mas também de resistência e de exceção em relação à sua potência real de cura.

Observemos aqui como Argan, o doente imaginário de Moliére, superou sua dificuldade. No fundo ele aceitou e encenou o pior pesadelo que ele “vivia antes de viver”, ou seja, a morte. Quando ele conseguiu brincar de morto, fingir que tinha lhe ocorrido o pior de seus cenários, foi também o momento em que ele descobriu a verdade sobre sua doença. Conselho: olhe o medo de frente, aceite que o perigo é real, mas não deixe que o medo que vem de fora se confunda com a angústia que vem de dentro. Para o primeiro, cautela e informação. Para o segundo, algo que ninguém poderá fazer por você: acalme-se. Leia, preste atenção em seus sonhos, medite sobre a sua história de vida, para pensar no que você tem feito consigo mesmo nos últimos tempos. Aprofunde-se em si mesmo, experimente o abismo mais profundo de seus fantasmas. Depois volte e conte uma boa história.

Para Maria Helena Fernandes, uma de nossas melhores especialistas em hipocondria, a escuta destes pacientes envolve a retomada da incerteza que as mães vivem diante da aflição sem nome que percebem em seus bebês. No fundo, a travessia desta incerteza quanto ao que se sente, ao que se tem e no limite ao corpo próprio que constitui a resposta convicta do hipocondríaco. Em outras palavras, ele transforma uma dúvida real em dúvida imaginária.

Ocorre que para a psicanálise todos os sintomas existentes estão presentes em cada um de nós, em estado latente. A aptidão para produzi-los decorre do fato de que os sintomas são soluções possíveis para conflitos que potencialmente estão em todos nós. Por isso, diante da pandemia de coronavírus, cada um de nós, deverá enfrentar sua própria hipocondria. Não subestime nem superestime o medo. Siga todas as recomendações de isolamento social e cuidados com higiene e limpeza, mas não se deixe dominar pela solidão. Respeite seu medo, mas não o deixe se transformar em angústia e desespero. Fique em casa, consigo e com os outros que também estão passando isso, junto com você, ainda que a a distância.

Informe-se bem e todo o dia, mas não deixe que a sugestionabilidade tome conta da casa. Tempos de incerteza e indeterminação são muito bons para revermos nossa arrogância e nossa expectativa de controle sobre a realidade. É possível que com calma e circunstância o coronavírus faça com que nós deixemos nossa coroa narcísica de lado e nos tornemos mais humildes diante de forças mais poderosas da natureza. Aproveite para pensar que o tratamento para sua solidão hipocondríaca pode ser um pouco de solidariedade. Se ainda assim, depois de tudo, sobrar alguma energia pode agradecer a ciência, as universidades, ao SUS (Sistema Único de Saúde) e a todos os médicos, jornalistas, políticos e cuidadores que estão fazendo o possível nesta situação.

[1] Aisenstein, M.; Fine, A. e Pragier, G (2002) Hipocondria. São Paulo: Escuta.

[2] Assis, Machado (2004) Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ateliê, p. 252-253.

[3] Berrios, G. & Potter, R. (2012) Uma História da Psiquiatria Clínica, vol III. São Paulo: Escuta.

(Fonte: blogdodunke)

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