“O entardecer traz consigo a noite, a escuridão, as sombras, o desconhecido, que também dão sentido à vida, fazendo parte dela. No dia seguinte, no horizonte da vida, surgirá mais um dia de viver, mesmo que não estejamos presentes. Será sempre outro dia de viver e talvez seja o último e derradeiro. No amanhecer, encontra-se outro entardecer. O entardecer é a metáfora da morte. Dia e noite são partes do mesmo e único fenômeno, vida e morte”. (Maria Emília Bottini)

A morte de um dos pais é um dos eventos mais difíceis que uma criança pode enfrentar. Ela expõe prematuramente à criança a imprevisibilidade da vida e a natureza tênue da existência cotidiana.

Estudos com adultos que apresentavam alguns distúrbios psíquicos e/ou mentais, especialmente depressão, revelam frequentemente lutos mal elaborados vivenciados na infância, sugerindo que tal perda pode contribuir para o agravamento de transtornos psiquiátricos e que esta experiência pode tornar uma pessoa emocionalmente vulnerável para a vida.

Para compreendermos melhor um pouco sobre as consequências da não elaboração adequada de um processo de luto e sua reverberação na vida adulta, compartilho com vocês uma crônica escrita pela Psicóloga Maria Emília, na qual ela nos conta sobre esta temática abordada no filme “Pais e Filhas”. Eu considero filmes uma ótima ferramenta para nos auxiliar na compreensão de questões complexas que permeiam a temática da morte e do luto.

“A dor que a perda traz”
Crônica escrita por: Profa. Dra. Maria Emília Bottini

Gosto de filmes que me provoquem o refletir e o sentir. Por vezes, algumas narrativas envolvem e agradam mais que outras. No filme “Pais e filhas” (2016), do diretor italiano Gabriele Muccino, o mesmo de “A procura da Felicidade”, encontramos uma temática que pode nos ajudar a refletir sobre o processo de luto e de perda e a maneira como estas marcas permanecem em nós, afetando nossos vínculos futuros. Por vezes, tais marcas nos acompanham a vida toda, sem nos darmos conta delas e do quanto nos causam dor.

O filme nos conta sobre o romancista ganhador do Pulitzer, Jake Davis que segue uma vida tradicional, casado e tem uma filha chamada Katie a quem chama carinhosamente de Batatinha. Certo dia, Jake está dirigindo e no carro está sua família. O casal discute, pois, a esposa acredita estar sendo traída, e sofre um acidente causando a morte da esposa.

Após a morte da mãe, Katie será afastada de seu pai que permanecerá sete meses internado em uma instituição de saúde mental para tratar da psicose maníaco-depressiva agravada por convulsões. Ele reluta, mas aceita deixar sua filha com a tia (irmã da esposa), o cunhado e dois sobrinhos.

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O filme narra essa história em dois tempos: Katie menina e adulta. Enquanto menina, após retornar da internação o pai enfrenta a disputa judicial com os tios que desejam ficar com a guarda de sua filha, alegando que ele não teria condições de criá-la. Narra a relação afetiva com o pai, a relação de cuidado e afeto, a dificuldade de enfrentarem e de falarem sobre a perda sofrida por ambos.

Já Katie adulta é pós-graduanda em psicologia, trabalha como assistente social e atende uma menina que não fala há um ano, devido à perda recente de sua mãe, tornando-se órfã porque o pai também já havia morrido. Mora sozinha, não tem amigos, tem vários parceiros sexuais, bebe frequentemente e não se vincula ou se compromete com ninguém. Na iminência do vínculo, abandona para não ser abandonada, fazendo da sexualidade seu poder e sua proteção.

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Ao conhecer Cameron sofre o impacto desta aproximação, pois não consegue abandonar e/ou manter o mesmo comportamento anterior. O envolvimento afetivo ocorre, ela se apega, embora não tenha clareza do que deseja nesta relação, permite-se viver. O rapaz é fã de seu pai, pois leu o livro chamado “Pais e Filhas” que trata da convivência entre ela e seu pai. Cameron sonha em ser escritor.

O vínculo se intensifica e na medida do possível ela se permite, mas nem tanto. Quando se dá conta do envolvimento, pois está indo à casa dos pais do namorado e a relação será assumida, tem uma crise e desiste. Foge do compromisso e sem saber como agir retorna ao comportamento antigo, traindo o parceiro no apartamento deles, deixando vestígios para ser descoberta. O namorado, ao descobrir, sai de casa.

Katie tenta voltar ao comportamento antigo, mas não consegue e faz um mergulho em sua tristeza, lamentando suas perdas.

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No trabalho Katie sofre pressão para conseguir um diálogo mínimo com a paciente que está tratando. Ela cria mecanismos para se aproximar de Lucy: desenhos, leitura, contação de histórias. Diante do lago no parque Katie verbaliza o desejo de ser um pato e Lucy toca-lhe a mão, ambas permanecem sentadas e caladas.

Ao comunicar à Lucy que ela será atendida por outra colega, a menina verbaliza “não, quero ficar com você”. Lucy estabeleceu um vínculo e não quer ser abandonada pela terapeuta também. E o tratamento segue, ela a ensina a andar de bicicleta e a enfrentar a dor que a perda traz.

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A cena em que ocorre a despedida entre a paciente e a terapeuta é terapêutica para ambas. Katie conta que seu pai também morreu quando ela era ainda criança, passando a morar com a tia e os primos. A tia estava separada, pois fora traída.

O filme não narra a convivência na casa da tia, que enfrenta um duplo luto, o da perda da sua única irmã e a separação por traição. Não fica claro, mas a narrativa sugere que a tia é alcoólatra. Após o diálogo no parque, Katie revisita sua história, assimila sua biografia pessoal, suas dores, não mais negando ou evitando a dor para não sofrer. Decide assumir seus sentimentos e se reaproxima do parceiro.

Nossas feridas emocionais são por vezes abertas na tenra idade, às vezes causadas por perdas dos genitores. É preciso compreender que perdas fazem parte do processo de viver e elas podem ocorrer em qualquer idade; é da natureza humana perdermos pessoas, objetos, relacionamentos….

Passar a vida sem expressar os sentimentos mais profundos que um processo de luto nos remete pode nos causar sérias dificuldades em estabelecer vínculos mais significativos, pois por medo da perda não nos vinculamos. Sempre corremos o risco de perder quando nos vinculamos a alguém, correr riscos é viver.

Maria Emília

A crônica de Maria Emília corrobora com a observação feita pelo teórico John Bowlby que em seus achados sobre apego conclui que a perda precoce de um dos genitores e/ou figuras de afeto na infância torna as pessoas altamente vulneráveis a transtornos psíquicos e/ou psiquiátricos, principalmente se o luto não for adequadamente elaborado.

Consequentemente, a medida que a vida progride e a pessoa atinge a idade adulta, as consequências psicoemocionais e interpessoais dessa “não elaboração” podem se agravar, levando a pessoa a manifestar dificuldades de vinculação afetiva.

O luto vivenciado na infância, muitas vezes, deixa cicatrizes emocionais profundas que podem ser experienciada por décadas e pode ter diversas ramificações. Diversas reações relacionadas à perda normalmente serão revitalizadas, revistas e analisadas repetidamente em sucessivos níveis do desenvolvimento humano.

Por isso, ao lidar com crianças que sofreram uma perda significativa, é importante estar ciente da natureza especial do luto infantil. Elas também precisam expressar seus sentimentos e sua angústia interna. Atenção e uma escuta ativa e afetiva podem ser fatores de proteção importantíssimos para que esta criança não desenvolva sintomas psicopatológicos na vida adulta.

Referências:
Bereavement: Reactions, Consequences, and Care
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK217849/




Psicóloga Especialista em Psicologia Hospitalar e Luto, Member of British Psychological Society. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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