“Tento esquecer o medo do presente, superar os traumas que sofri e enfrentar o mundo sem você” (Nijair Araújo Pinto)

Estamos vivenciando um momento de crise e há situações que podem agravar a experiência deste momento. A violência doméstica contra mulheres é uma destas experiências. Infelizmente constatou-se que este problema seríssimo se agravou muito neste período de isolamento físico.

A violência contra mulheres possui números alarmantes ao redor do mundo. Segundo Carolina Cunha, as mortes violentas por razões de gênero são um fenômeno global e vitimizam mulheres todos os dias, como consequência da posição de discriminação estrutural e da desigualdade de poder, que inferioriza e subordina as mulheres aos homens. O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. No entanto, os 5 países considerados mais perigosos para as mulheres viverem incluem Arábia Saudita, Somália, Síria, Afeganestão e Índia. A Índia é classificada como o país mais perigoso do mundo para as mulheres. A nação têm casos de estupro, ataques ácidos, assédio sexual, casamentos precoces, trabalho forçado e escravidão sexual que afetam as mulheres.

No Brasil, em 2019, houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídios – crimes de ódio motivados pela condição de gênero. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média. Dados de 2018 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicam que o Brasil atingiu recorde de registros de lesões corporais dolosas em decorrência de violência doméstica, com 263 mil casos. Também houve recorde de registros de estupro, com 66 mil vítimas.

No Reino Unido, todos os anos, cerca de 2 milhões de pessoas sofrem algum tipo de abuso doméstico – 1,3 milhão de vítimas são do sexo feminino (8,2% da população). Anualmente, mais de 100.000 pessoas no Reino Unido correm alto risco iminente de serem assassinadas ou ficarem gravemente feridas como resultado de abuso doméstico. Nos Estados Unidos da América, em média, 24 pessoas por minuto são vítimas de estupro, violência física ou perseguição por um companheiro. Quase 3 em cada 10 mulheres (29%), nos EUA , sofreram estupro, violência física e/ou perseguição por um parceiro. 1 em cada 4 mulheres (24,3%) com 18 anos ou mais, nos EUA, foram vítimas de violência física grave por um companheiro em sua vida.

Diante deste panorama, o isolamento físico imposto pela pandemia da COVID-19 traz à tona, de forma potencializada, alguns indicadores preocupantes acerca da violência doméstica contra a mulher. Segundo Vieira, Garcia e Maciel, as organizações voltadas ao enfrentamento da violência doméstica observaram um aumento deste tipo de violência por causa da coexistência forçada, do estresse econômico e de temores sobre o Coronavírus. No isolamento, com maior frequência, as mulheres são vigiadas e impedidas de conversar com familiares e amigos, o que amplia a margem de ação para a manipulação psicológica. Na China, os registros policiais de violência doméstica triplicaram durante a pandemia. Na Itália, na França e na Espanha também foi observado aumento na ocorrência de violência doméstica após a implementação da quarentena domiciliar obrigatória. No Brasil, segundo dados do Ligue 180 disponibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos houve um aumento de cerca de 17% no número de ligações com denúncias de violência contra a mulher durante o mês de março.

De acordo com Roesch, Amin, Gupta e García-Moreno, somente no Condado de Jianli, na província de Hubei, na China, um departamento de polícia relatou o triplo de casos de violência doméstica em fevereiro de 2020 em comparação com fevereiro de 2019. No Reino Unido, um projeto de rastreamento da violência contra as mulheres observou que as mortes por abuso doméstico entre 23 de março e 12 de abril mais que dobraram, foram 16 mortes, em comparação com a taxa média nos 10 anos anteriores.

Como pudemos observar a questão da violência doméstica é muito séria. Como consequência deste tipo de violência, as mulheres vítimas sofrem uma série de perdas e muitas vivenciam um processo de luto, muitas vezes, não reconhecido. Essas mulheres perdem, quando ainda estão no relacionamento: a independência, a segurança, o acesso às redes sociais, o sistema de crenças, a confiança nas pessoas e a esperança pelo final feliz que todos sonham ao se casarem.

Na outra ponta, quando as mulheres conseguem sair do sistema de aprisionamento físico e psicológico imposto pelo parceiro, outras perdas ocorrem: a moradia, as roupas (muitas não levam nem uma peça para o novo abrigo), o convívio com outros membros da família, a esperança de um futuro que ela esperava ter junto ao parceiro, a vida do jeito que ela havia sonhado e gostaria que tivesse sido, e a perda da autoestima. Há uma perda de si mesma diante da dor. Elas também vivenciam a autoculpa, a vergonha, sentimentos internos perturbadores e constrangimento. Ao sofrer a perda de um relacionamento, algumas sobreviventes de abuso doméstico agravam seu luto revivendo seu trauma. Segundo Holliger, este processo de luto, inúmeras vezes, não é reconhecido abertamente, não é validado socialmente, não é observado publicamente. A pessoa não tem socialmente direito de lamentar essas perdas.

Nos casos mais graves e extremos quando ocorre a morte da vítima, são os familiares e amigos a vivenciarem um processo de luto. Por trás de cada uma das mulheres vítimas de feminicídio está uma família enlutada e marcada pela dor da ausência e pela brutalidade dos crimes, geralmente cometidos por maridos ou ex-companheiros. Neste sentido, quando a vítima possuía filhos, estes vivenciarão dois lutos simultaneamente. O luto efetivamente pela morte da mãe e o luto simbólico pela perda do pai, que em muitos casos será preso e retirado da cena cotidiana dos filhos. Neste contexto, estas crianças também experienciarão outras perdas reais e simbólicas que podem causar um trauma igualmente de difícil manejo e levá-las a um estado de ansiedade e depressão.

Há muito a dizer e fazer quando se trata de violência doméstica. Processar o trauma do abuso no contexto doméstico é de uma complexidade ímpar. A assimilação, a compreensão dos fatos e a elaboração do trauma acontecerá por meio de uma jornada árdua onde emoções como raiva, angústia, tristeza, culpa, arrependimento e alívio serão experienciadas. Não será nada fácil lidar com essas emoções e suas implicações. Estas são complicadas, confusas, frustrantes e, por vezes, exaustivas, mas é importante que essas emoções sejam expressas e validadas.

Na busca de uma estratégia e solução para a violência doméstica há necessidade do envolvimento das autoridades públicas, serviços sociais, advogados, profissionais da saúde e sociedade civil no sentido de proteger estas mulheres e validar suas necessidades urgentes de segurança. Mulheres que estão vivenciando violência doméstica, física ou psicológica, precisam de ajuda efetiva para denunciarem seus agressores e preservarem com dignidade suas preciosas vidas.

Autora: Nazaré Jacobucci
Mestranda em Cuidados Paliativos na Fac. de Medicina da Universidade de Lisboa
Psicóloga Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)

Utilidade Pública: Mulheres em situação de violência ou testemunhas de violência contra mulheres – Denunciem!

Brasil:
Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 (24h00)
Campanha “Sinal Vermelho Para a Violência Doméstica” – A vítima de violência doméstica deverá fazer um X vermelho na palma da mão e mostrá-lo ao atendente de uma das farmácias que aderiram ao projeto. 10 mil farmácias do país já podem registrar denúncias de violência contra a mulher.

Reino Unido:
Ligue para o 999 se for uma emergência ou se você estiver em perigo imediato.
National Domestic Abuse Helpline – 0808 2000 247 (24h00)

Estados Unidos da América (EUA):
National Domestic Violence Hotline – Recursos e ajuda podem ser encontrados pelo telefone 1-800-799-7233. Pessoas surdas ou com deficiência auditiva podem usar o TTY 1-800-787-3224 (24h00).

Portugal:
Informação às vítimas de violência doméstica – 800 202 148 (24h00)

Referências:

Cunha, C. Feminicídio – Brasil é o 5º país em morte violentas de mulheres no mundo. Atualidades. Portal UOL Educação [Online]. Disponível em: https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/feminicidio-brasil-e-o-5-pais-em-morte-violentas-de-mulheres-no-mundo.htm?cmpid=copiaecola

Holliger, C. Loss, Grief, and Violence Domestic. PDF [Online]. Disponível em:
https://www.fcasv.org/sites/default/files/Loss,%20Grief,%20and%20Domestic%20Violence,%20Concetta%20Hollinger.pdf
Marques, E. S. et al. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, 2020. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000400505&lng=pt&nrm=iso

National Domestic Violence Hotline [site]. Disponível em: https://www.thehotline.org/
Roesch, E.; Amin, A.; Gupta, J.; García-Moreno, C. Violence against women during covid-19 pandemic restrictions. BMJ 2020. Disponível em: https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1712

Safe Lives. Ending Domestic Abuse [Site]. Disponível em: https://safelives.org.uk/
Sawe, B. E. The 10 Most Dangerous Countries For Women. World Atlas [Site]. Disponível em: https://www.worldatlas.com/articles/the-10-most-dangerous-countries-for-women.html

Velasco, C.; Caesar, G.; Reis, T. Mesmo com queda recorde de mortes de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicídios em 2019. Monitor da Violência. Portal G1 [Online]. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml

Vieira, P. R.; Garcia, L. P.; Maciel, E. L. N. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela?. Rev. bras. Epidemiologia, Rio de Janeiro, v. 23, 2020. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2020000100201&lng=pt&nrm=iso

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Psicóloga Especialista em Psicologia Hospitalar e Luto, Member of British Psychological Society. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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