Dona Selma vem me ver a cada quatro meses. Desde seu diagnóstico oncológico (um câncer de intestino localizado, tratado com cirurgia há pouco mais de 3 anos), ela nunca perdeu uma consulta ou exame.

Aos 67 anos, com uma boa saúde, parece sempre feliz e tranquila. Dona Selma é o tipo da paciente cuja consulta parece sempre curta demais, mesmo que fiquemos conversando por quase uma hora. Suas perguntas são intermináveis, mas muito poucas delas são sobre sua saúde.

O que a interessa mesmo é saber sobre a vida das pessoas, inclusive a minha. Antes que alguém levante a mão e comente o quanto Dona Selma é mexeriqueira, já aviso: não é. E posso afirmar isso com convicção.

Ao contrário: ela pouco quer saber sobre fatos, comentários ou tragédias. O que a encanta são os sentimentos, e a forma com que nós, humanos, lidamos com eles.

Foi numa dessa conversas quase filosóficas que surgiu o assunto de como é complexo manter nossos relacionamentos saudáveis. Ela própria tinha vivenciado um casamento muito infeliz, que culminou num divórcio litigioso e traumático, e que lhe custou anos para superar. Falamos sobre a dolorosa mágoa quando alguém nos decepciona, e sobre o impacto que isso pode ter nas nossas vidas, incluíndo nossa saúde. Foi aí que Dona Selma revelou o que vinha guardando para si nesses anos todos: ela achava que seu câncer tinha surgido da mágoa que tinha do ex-marido.

Achava, aliás, era pouco: ela tinha certeza absoluta disso. Contou sobre os anos de convívio turbulento entre eles, com a descoberta de relacionamentos extra-conjugais e outras deslealdades, e do quanto, aos poucos, ela só conseguia enxergá-lo como uma pessoa miserável e cruel, até reduzi-lo a um monstro que dilapidava sua vida. Pediu o divórcio (que ele aceitou imediatamente), mas o processo todo levou anos a ser concluído, devido aos ressentimentos de ambos os lados que os impelia a não facilitar as coisas um para o outro. Algum tempo depois do processo de divórcio, Dona Selma descobriu o câncer.

Nessa época, já não vivia com o ex-marido há quase 6 anos, e muitas das emoções que tomaram conta deles já tinham esmaecido no tempo. Foi no momento de maior solidão em sua vida que Dona Selma se surpreendeu ao receber o telefonema do ex-esposo, colocando-se à disposição para levá-la às sessões de quimioterapia. Sem filhos e sem outras opções para ampará-la, ela acabou aceitando a ajuda. A cada 15 dias, ele a trazia para receber o tratamento, aguardava na sala de espera e a levava de volta para casa. Às vezes, levava sopa ou sanduíches para ela comer à noite, caso as náuseas permitissem.

O mais espantoso foi que, durante todos os meses de quimioterapia (e mesmo depois, nas consultas de rotina), eu nunca o vi, e nem sequer imaginava que ele estava dando esse suporte a Dona Selma. Ele sempre mantinha uma distância respeitosa da vida dela. Não entrava nas consultas médicas, não lhe fazia perguntas mais específicas do que “Qual a data da próxima quimioterapia?” ou “Você precisa de mais alguma ajuda?”. Foi assim que, no decorrer do tratamento, eles aprenderam a se relacionar de outra forma, deixando as mágoas se dissiparem.

Ela se lembra dessa época como “terapêutica”, porque arrancou dela a tóxica sensação de ressentimento que controlava sua vida. Não chegaram a se tornar bons amigos, muito menos reatar o relacionamento, mas passaram a conviver de forma harmoniosa e respeitosa, o que trouxe benefícios para os dois.

Eu olhei para ela, espantada. Era admirável ver alguém superar tantas mágoas e reaprender a enxergar o outro. Ela sorriu, do jeito tranquilo dela, e perguntou: “Doutora, você sabe coar café?”. Não entendi. Coar café? Do que estamos falando? Ela continuou: “Sabe, querida, demorei pra perceber que manter os relacionamentos é muito parecido com coar um bom café. A gente precisa aprender a deixar passar só o que é bom, só o que nos aquece o coração. A borra, a gente deixa presa no coador, e joga fora. Todo mundo tem potencial pra nos brindar com um bom café, mas todo bom café tem borra pra jogar no lixo.” Rimos juntas, ela tinha sido genial! Pensei no quanto precisamos ajustar nosso coador no decorrer da vida.

No quanto “coamos” demais ou de menos as pessoas que encontramos pelo caminho, e no quanto desperdiçamos bons cafés porque ficamos com raiva, nojo ou preguiça de lidar com a borra. Dona Selma, com seu cafezinho coado, estava me ensinando sobre tolerância, e falando sobre o grande esforço necessário para não deixarmos nossos critérios tão restritos, tão apertados, que não passe nem água limpa por eles. Ela me falava sobre sabedoria, aquela que não permite que aquilo não nos serve contamine nossas vidas, mas que reconhece o que nos faz bem e “deixa passar”.

Foi assim, me ensinando a coar café, que Dona Selma ganhou minha admiração para sempre.

(Autor(a): Ana Lucia Coradazzi)
(Fonte: nofinaldocorredor.com – *Texto publicado com a autorização do site)




A busca da homeostase através da psicanálise e suas respostas através do amor ao próximo.

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