“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós.” (José Saramago)

Você já se imaginou fazendo as pazes com seu arqui inimigo? Ou empatizando com aquele colega que você não suporta?

Eu sei que não dá para gostar de todo mundo e nem fazer com que todo mundo goste da nossa pessoa. Viver exige tomadas de decisão, produz conflitos de interesses ou disputas por recursos limitados. Em alguns momentos da vida criaremos inimizades, é indiscutível.

Algumas dessas histórias deixam marcas profundas e, aqueles com quem nos enfrentamos, passam a ser vistos como insuportáveis. Tudo que a gente deseja é ficar bem longe deles, mas nem sempre isso é possível. Além disso, por mais estranho que possa parecer, nem é bom nos afastar completamente.

Vivendo em sociedade…
O ser humano vive em sociedade e precisa lidar com os desafios de viver em grupo para crescer enquanto indivíduo. A existência do eu individual só faz sentido mediante o contato com outro. Este outro que, muitas vezes, teima em não concordar com nossos posicionamentos e acaba frustrando nossas expectativas.

Nesse movimento, somos obrigados a sair de nós mesmos e perceber o mundo além das nossas vontades. Coisa que, apesar de causar desconforto, produz crescimento pessoal e ampliação da consciência. O exercício de se colocar no lugar do outro, em poucas palavras, é a tal da alteridade.

A nossa época tem se mostrado muito polarizada e abrir espaço para compreensão de quem pensa diferente não tem sido uma atividade muito constante. Apesar de saber das resistências que temos, acredito que o esforço de entender o ponto de vista de seus desafetos é um exercício benéfico para você mesmo. Vamos juntos?

Quem está falando a verdade?
Como psicólogo, passo meus dias escutando histórias. Algumas delas são felizes, mas a maior parte dizem respeito aos piores momentos que as pessoas vivem. As frustrações do amor, os conflitos no emprego, as decepções da vida. É como dizem: “ninguém vai parar na terapia porque se sente maravilhosamente bem”.

Faz parte da minha tarefa ouvir essas histórias atentamente. O narrador me escolheu como ouvinte e sei o quanto elas são importantes para pessoa sentada à minha frente. Apesar disso, devo dizer que essas histórias, por elas mesmas, não são a parte mais importante do trabalho.

O que a maioria dessas pessoas me contam são atividades cotidianas nas quais elas intervêm com suas observações, pontos de vista e julgamentos. Raramente, nas primeiras fases de uma terapia, elas se preocupam em questionar suas próprias narrativas. Aquilo é a verdade e ponto.

No nosso dia a dia, podemos ficar preocupados e ponderar se aquilo que nos é contado é verdade ou não, se aquela sequência de fatos aconteceu da exata forma que nos foi narrada. Numa sessão de terapia, isso não acontece do mesmo jeito. Os anos de trabalho me ensinaram que toda história contada é, em parte, verdade e, em outra, ela é apenas um dos pontos de vista possíveis.

Ninguém percebe o mundo exatamente como ele é. Tudo é filtrado por nossas capacidades sensoriais e pelas traduções que nosso cérebro precisa fazer para entender o que se mostra a nossa frente. Cada pequeno acontecimento é temperado com a nossa substância psicológica, com o nosso jeitinho de ver o mundo.

Não existe uma realidade pura. Sempre que tento entender o mundo, ou explicá-lo, faço isso à minha maneira, com os padrões que tenho para percebê-lo e analisá-lo.

As histórias que as pessoas me contam, assim como as histórias que eu conto, estão repletas de inferências pessoais. Uma pessoa me elogia, por exemplo, e imediatamente busco nas minhas vivências o que um elogio pode significar. Se as experiências de ser elogiado que vierem a minha mente forem boas… eu fico feliz pelo elogio. Se forem ruins, fico desconfiado. A partir daí, eu passo a contar sobre essa pessoa, não só por quem ela é, mas por quem eu acho que ela deve ser.

Quando contamos uma história defendemos uma visão de mundo. Meus clientes vivem tentando me convencer de seus pontos de vista. Muitas vezes eles desejam que eu confirme que estão corretos… que são os mocinhos… que eu faria tudo igual se me encontrasse na mesma situação que eles.

Enquanto psicólogo, não é meu papel julgar ou determinar se alguém está certo ou não, mas algumas histórias são contadas com tanto ímpeto e seriedade que, devo admitir, fico tentado a concordar com cada palavra e atitude do cliente.

Isso não significa que eu viva desconfiado das narrativas que me são contadas. Se assim fosse, seria eu, também, um sujeito paranóico. Não se trata de juízos de valor, dizer que algo é verdadeiro ou falso, bom ou mau. Trata-se de ampliar o entendimento sobre si mesmo e do mundo ao redor, entendendo que outras versões são possíveis e igualmente válidas.

Indo além de você mesmo
Lembre-se que eu disse no começo do texto que a maior parte das histórias contadas são dolorosas e cheias de emoção. A pessoa chegou até a clínica pois não dá conta de ir além de seu sofrimento. Emoções muito fortes podem dificultar o discernimento. Por isso é tão importante expandir as possibilidades de entendimento, criar outras formas de contar a própria existência.

Basta um pequeno esforço e você irá se lembrar de alguma pessoa que parece ter apenas um tema em suas conversas. O ciumento que vê o risco de traição em todas as situações; a pessoa que está muito cansada do próprio trabalho e não consegue falar de outro assunto; ou alguém que acredita não ter um pingo de sorte e só se lembra dos momentos em que tudo deu errado.

Claro que os exemplos que apresentei aqui são um tanto simplificados, mas acredito que você tenha pego o sentido da coisa: a pessoa também traz dentro de si o que projeta ao seu redor.

Não é que elas estejam inventando, mas as narrativas que elas apresentam são unilaterais. O mesmo acontece quando pensamos nas situações em que temos que conviver com quem não nos agrada.

E o que isso tem a ver com minhas desavenças?
Esse texto seria muito confortável se eu apenas te convidasse a apontar o dedo para as pessoas ao nosso redor. Seria confortável e inútil. Identificar comportamentos em outras pessoas é relativamente fácil, mais difícil é perceber certas atitudes em nós mesmos. Exige algum esforço.

Eu consigo pensar em muitos exercícios que podem incentivar reflexão e ampliar horizontes além das histórias que contamos, mas temos que partir de algum lugar. Por isso, proponho apenas um. Vamos realizá-lo?

1. Lembre-se de alguém que você não gosta.
De preferência, alguém que você não goste mas tenha que conviver mais ou menos próximo. Pode ser alguém com quem você tenha uma disputa ou uma pessoa que te magoou de alguma forma, um sujeito por quem não nutre carinho ou qualquer tipo de admiração.

Para fins práticos, não escolha alguém que lhe parece um psicopata ou um monstro sem qualquer escrúpulo. Estamos apenas começando e tentar fazer esse exercício com o Hitler ou Calígula pode deixar as coisas difíceis demais.

2. Relembre alguma história com essa pessoa.

Esta parte é fácil, né?

3. Inverta o ponto de vista.

Tente abrir mão dos seus julgamentos para explicar porque você está certo e o outro errado. Medite sobre o que levou a pessoa ser como é, o que fez com que ela agisse do jeito que agiu. Imagine os pensamentos dela, os medos, as fraquezas que ela sente. Olhe para você mesmo a partir dos olhos dessa pessoa. O que você percebe?

O exercício pode ser repetido quantas vezes precisar, com quantas pessoas quiser e sob as mais diversas memórias. A proposta é simples, a realização nem tanto. Pode levar algum tempo até surgir algum tipo de identificação com o outro, até sair dos próprios limites. Não precisa dar tudo certo, logo da primeira vez. Eu posso dizer que ainda é difícil para mim, mas que é recompensador continuar exercitando.




Marcelo Marchiori é psicólogo clínico, especialista em interpretação de sonhos e imaginação ativa. Escreve [quase] diariamente sobre psicologia, comportamento e sociedade. Pode ser seguido por seu perfil no Facebook. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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