O texto “ O Espelho” de João Guimarães Rosa levou-me a refletir sobre vários pontos que avalio como interessantes.

Vou me valer de aspectos bem mais práticos e, vez por outra, com pontos de apoio já estudados e confirmados em minhas áreas de atuação profissional.

De início observo que nossa imagem especular é sempre invertida: focando nosso corpo ou apenas o rosto, tudo que você nele como seu lado direito é, na realidade, o lado esquerdo do mesmo.

Tal imagem no espelho não é como você se vê, mas como é visto pelos outros. Além disso, cada um tem de si uma autoimagem que é a visão mais objetiva ou real do “eu” (é a Imagem, muito próxima do eu real, o Sujeito que se vê). Mas também uma imagem derivada de como se sente visto pelos outros ou de como gostaria de ser visto (é a Imago, fruto também do mundo imaginário, mais subjetivo, aqui caracterizando o Objeto do olhar dos outros).

Imagem e Imago fundem-se naturalmente quanto ao nosso conceito de como somos visualizados. Estas duas observações preliminares já nos mostram que nossa imagem refletida no espelho é a que mais se aproxima da nossa realidade imagética, mas não é inteiramente realística ou exclusiva.

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Alguns conceitos relativos à imagem especular foram muito bem estudados e conceituados por Freud (jogo do carretel e jogo do espelho, em que a criança faz-se aparecer e desaparecer), por Winicott (o rosto da mãe como o primeiro espelho do bebê) e por Lacan (etapa do espelho, quando a criança começa a perceber a totalidade de seu corpo). Em suas essências, tais estudos apontam a importância destas experiências para a distinção de um “eu” real e um “eu” virtual.

A formar estas imagens (mais reais) e imagos (mais devaneadas), contribuem também nossos traços genéticos familiares e alguns símiles zoológicos, fatos apontados pelo autor. Acrescento semelhanças eventuais com pessoas totalmente desconhecidas e que, por vezes, parecem-se mais conosco do que nossos próprios irmãos.

Nas experiências de reflexões imagéticas do ensaísta, ele tenta abstrai-se destes traços adicionais, tentando ver se enxerga sua imagem essencial. Sua tenacidade experimental vai a ponto de abstrair-se destas influências de outros na composição de seu retrato especular, que começa a se revelar lacunar, em mosaicos. Diria que ele produz uma regressão do sentido da visão. Refere-se ao olhar ainda imaturo das crianças no caminho de absorverem melhor as formas do objeto.

Cabe aqui o registro de uma observação de Donald Winicott, pediatra e psicanalista inglês discípulo de Freud (“O que vê um bebê quando contempla o rosto de sua mãe sorridente? Sorri também e contempla a si próprio; o rosto da mãe sorridente é, por assim dizer, o primeiro espelho da criança ).

Cite-se também um episódio de susto do autor diante uma imagem especular distorcida e talvez grotesca de si próprio. Ele afirma que passava por momentos difíceis. E, diante vivências de autocrítica pesada é possível estranharmos nossa própria imagem: aquela que é nossa visão mais frequente e íntima de nós mesmos pode ceder lugar a uma figuração terrivelmente estranha e até assustadora. É a imagem mais íntima e segura transformada por instantes numa estranheza ameaçadora. Freud descreveu tal situação num magistral artigo intitulado “O Estranho”.

E o autor vai desenvolvendo suas experiências até enxergar apenas pontos bem tênues de sua imagem. E, em determinado dia, não vê sua imagem no espelho, aspecto totalmente lacunar que irá durar algum tempo. Numa de suas passagens diz “…ao fim da ocasião de um sofrimento grande ..”, ocasião em que volta a não ver sua imagem no espelho. Talvez por isso o que o autor consegue, após suas primeiras experiências movidas por curiosidade, seja negar mais acentuadamente alguns aspectos de sua plasticidade corporal, chegando ao ápice de negação total da imagem (ou denegação ou recusa ou negatividade) de sua percepção imagética como um todo.

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Pouco mais à frente, em uma fase amorosa (“… Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava …”), volta a se enxergar inteiramente. Aqui é possível apontar uma inter-relação entre ser amado e autoimagem, um maior desconforto ou conforto emocional influindo na sua autovisão imagética.

Todos os movimentos que mencionei acima em certas passagens, como os momentos de maior ou menor aceitação de si , a negação, a denegação, a estranheza e as projeções da própria pessoa são, na imensa maioria das vezes, inconscientes.

É quase impossível produzir tais fatos de forma consciente, o que é extremamente singular. Um exemplo: alguém perde seus óculos, procura-os com critério em todos os lugares possíveis e acaba por encontrá-los na sua mesa de estudos, ao lado de seu computador, o primeiro lugar checado em inúmeras vezes. Tal pessoa queria conscientemente encontrar seus óculos, mas transitoriamente não os encontrou; não queria perdê-los, mas inconscientemente não os enxergou no próprio lugar onde os deixara, negando o que estaria frontal aos seus olhos.

Pois o autor desta narrativa – que estou tratando como um ensaio – conseguiu a proeza de uma negação maior, a da sua própria imagem especular. Donde ter ficado perplexo com suas experiências.

Reproduzo uma reflexão roseana ao longo do ensaio:

“…Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haverá em mim uma existência central, pessoal, autônoma?Seria um .. des-almado?”

E tento uma resposta: – Não, Guimarães; você produziu com lucidez fenômenos que via de regra soem acontecer de forma inconsciente. Você, com sua essência, pensou, escreveu e publicou seu ensaio há anos. E eu, agora, em maio de 2016,acabei de conversar com você.




Médico Psiquiatra e Psicanalista. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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