Por que dizemos que as crises mundiais são de origem humana, mas não natural? Afinal, humanos são mamíferos, seres biológicos tão naturais quanto qualquer outro. Não há por que fazer distinção entre humanos e natureza, pois somos parte dela e, portanto, tudo o que fazemos é “natural”. No entanto, reforçamos essa distinção. Reconhecemos na natureza uma certa harmonia, equilíbrio, autenticidade e beleza que não encontramos no mundo da tecnologia — abandonamos o “natural” para adotar o “artificial”.

A SEPARAÇÃO, O PROGRESSO E A ASCENSÃO
A tecnologia se encontra no centro da distinção entre humanos e natureza. Nenhuma outra espécie tem a nossa capacidade de transformar (ou destruir) o meio ambiente, controlar os processos da natureza ou transcender suas limitações. A cultura, por sua vez, é o equivalente mental e espiritual da tecnologia, modificando a própria natureza humana, assim como a tecnologia faz com o meio ambiente.

Ao dominar a natureza através da tecnologia, e a natureza humana pela cultura, nos diferenciamos de todo o resto e criamos um reino humano à parte. Enxergamos essa separação como uma espécie de “ascensão”, o caminho para a superação das origens animais. Certos de nossa superioridade, resolvemos exaltar nosso acúmulo de cultura e tecnologia — eis o “progresso”.

É, portanto, essa separação, na forma de tecnologia e cultura, que nos define como humanos e tem gerado todas as crises atuais. Os religiosos podem atribuí-las à nossa separação de Deus; os ambientalistas, à separação da natureza; os ativistas sociais, à dissolução das comunidades (separação entre as pessoas). Podemos até mesmo considerar o lado psicológico, especialmente quando nosso comportamento é modelado por pressões sociais (separação do nosso “verdadeiro eu”).

Para o bem ou para o mal, a tal Separação nos fez quem somos e criou o mundo que conhecemos hoje, e assim nos acostumamos com aquela constante angústia existencial de “seres faltantes” à la Freud. A sensação de que a vida e o mundo deveriam ser “algo mais” reflete o caráter puramente ilusório da Separação. Apenas uma ilusão, sim, mas tão poderosa que gerou as crises que vemos na política, meio ambiente, medicina, educação, economia, religião, relacionamentos etc. Todas percorreram o mesmo caminho, guiadas por uma concepção distorcida do que chamamos de “Eu”. E não vou nem colocar toda a culpa no capitalismo ou no dinheiro, pois ambos são apenas sintomas, e não causas, da Separação.

A raiz desse fenômeno se encontra na concepção moderna de um Eu discreto e isolado: o “eu sou” de Descartes, o “homem econômico” de Adam Smith, o “fenótipo superior” de Darwin, o “ego encapsulado no corpo” de Alan Watts. São todos exemplos de um Eu fundamentalmente separado — mas condicionalmente dependente — de “outros” (outras pessoas e a natureza). Se nos reconhecemos apenas como seres discretos e separados, vamos, naturalmente, manipular tudo o que nos cerca a fim de obter a maior vantagem possível. A tecnologia, em particular, se baseia na individualização (ou separação) conceitual do ambiente, pois toma o mundo como objeto de manipulação e controle. O slogan do progresso é “Vamos tornar o mundo um lugar melhor”. E eu pergunto: pra quem?

Se, como escrevi, nossa concepção de um Eu discreto e separado é apenas uma ilusão, então toda aquela noção de “progresso” ou “ascensão da humanidade”, como produto da tecnologia e cultura, também é baseada numa ilusão. Desse modo, uma transformação consciente da nossa percepção, ou melhor, uma reconcepção de “si mesmo” traz implicações tão profundas que nos levam a uma redefinição radical do que é ser “humano” e de que forma nos relacionamos uns com os outros e com o mundo.

A tecnologia não só se baseia na separação conceitual da natureza, como também reforça essa ruptura. Tome como exemplo os países mais ricos, onde as estações do ano quase não afetam a vida das pessoas: a mesma comida o ano inteiro, ar condicionado no verão e calefação no inverno. As limitações naturais do nosso corpo também já não restringem quão longe podemos viajar ou quão distante podemos nos comunicar. Cada avanço tecnológico nos distancia da natureza, mas também nos livra das limitações naturais. Resumindo em 3 movimentos: a separação, o progresso e a ascensão.

Leia Mais: Separação é ferida que dói e se sente

O PARADOXO DO PROGRESSO
Enfrentamos um paradoxo. De um lado, tecnologia e cultura são responsáveis pela separação entre humanos e natureza, dando origem às crises que convergem atualmente. Por outro, tecnologia e cultura buscam explicitamente aperfeiçoar a natureza, tornando a vida mais fácil, segura e confortável. Afinal, quem vai negar que ferramentas são melhores que as mãos? Que o fogo nos mantêm aquecidos, e a medicina, mais saudáveis que nossos antepassados primitivos? Ao menos é o que essas tecnologias pretendiam. Mas fizemos, realmente, do mundo um lugar melhor? Se não, por que a tecnologia ainda não alcançou seu propósito? De que forma essa série de avanços cumulativos se relacionam com as crises atuais?

Mesmo nos momentos mais difíceis, sentimos que algo melhor é possível — o sonho de um mundo e uma vida diferentes. Ideias sobre esse mundo de plenitude e beleza já inspiravam idealistas há milhares de anos, e ainda ressoam em nossa psique coletiva como noções de “Céu”, “Era de Aquário” ou “Éden”. Os místicos de antigamente diziam: “tal mundo está mais próximo do que imaginamos, dentro de nós e ao nosso redor”. Contudo, estará sempre além do alcance, inacessível a qualquer esforço que se baseie em nossa concepção atual de “si mesmo”. Para alcançá-lo, essa concepção distorcida e as implicações de sua relação com o mundo devem ruir.

Imersos nos problemas cotidianos, não é fácil perceber o que está acontecendo em larga escala e, quem dirá, sob outra perspectiva. Há futilidade, falsidade e até uma falta de fundamento nesse “programa de controle” do mundo que, coletivamente, nos sentimos forçados a adotar, buscando nomear e numerar, categorizar e dominar, transcender a natureza e a natureza humana. Uma vez exposto, esse “programa” perde sua força e só então conseguimos abandoná-lo, antes que consuma todos os vestígios de vida e beleza na Terra. Esse mundo determinista, mecanístico e objetivo, resultado do Eu separado e discreto, não é real, mas apenas uma projeção da nossa própria confusão.

SUPERANDO O FATALISMO COTIDIANO
Calma. Não escrevo somente como crítica à sociedade atual, e vale destacar que as soluções que exploro não estão nos moldes de “temos que fazer isso” ou “não podemos fazer aquilo”. Afinal, quem diabos é aquele sujeito oculto: “nós”? Você e eu somos apenas “você e eu”. Talvez seja por isso que discursos políticos do tipo, “precisamos fazer isso e aquilo”, sejam tão desanimadores; que muitos ativistas se sintam rejeitados e acabem perdendo as esperanças.

Você e eu, independente do quanto concordamos, nunca seremos aquele “nós” da ação coletiva, como em “precisamos ter uma vida mais sustentável”. Sei que muitos compartilham da minha intuição de que há algo de errado com a vida e o mundo, e a reação não é carregada de indignação, mas de desânimo, desamparo e impotência. Que diferença uma pessoa, apenas uma, pode fazer? Na verdade, essas dúvidas e emoções também são sintomas da Separação, aquela mesma por trás de todas as nossas crises. Se me considero um indivíduo discreto e separado, minhas ações fazem pouca diferença. Mas lembre-se que essa lógica é baseada numa ilusão. Nós (você e eu) temos um poder além da imaginação.

As atuais crises não são reflexos de uma condição humana imutável. Elas têm origem na confusão entre o Eu e o mundo, já incorporada em nossos princípios científicos e religiosos fundamentais, além de aplicada em todos os aspectos da vida moderna: da política à economia, da medicina à educação. A destruição social e ambiental é uma consequência inevitável da perspectiva que temos do mundo, assim como a restauração e o equilíbrio têm sido, e serão ainda mais, consequências de uma outra perspectiva enraizada em culturas e religiões antigas, aliada ao resultado de implicações ainda desconhecidas da ciência moderna.

A atual ruptura entre o Eu e o mundo (uma espécie de dualismo), assim como a consequente divisão do mundo em entidades discretas, vai perdendo sua utilidade como paradigma dominante. Nossa individualização, como pessoas (e como espécie) separadas da natureza, está completa. O que começou com a agricultura, ou até mesmo antes, com a descoberta das tecnologias da pedra e do fogo, chegou ao limite. Fomos longe e nos distanciamos de tudo, mas também criamos verdadeiras maravilhas. Nos tornamos uma verdadeira força da natureza que transformou o planeta. Mas se os dons humanos também são naturais, o que houve com a harmonia, beleza e autenticidade que tanto sentimos falta nesse mundo tecnológico? Será possível alcançar aquela condição humana que só acreditamos (e sentimos) ser possível em momentos de inspiração? Só o tempo dirá.




Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP). É colunista do site Fãs da Psicanálise.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui