“Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier”. (Sérgio Britto – Titãs)

Todos nós sabemos que ao ouvir uma boa música somos tomados por uma sensação de bem-estar. Esta sensação pode trazer benefícios para a saúde, tais como melhorar o humor e reduzir o estresse e a ansiedade.

A música como recurso terapêutico, principalmente no contexto hospitalar, pode ser uma ferramenta para o paciente enfrentar sua condição clínica.

A música pode auxiliar no aumento da capacidade respiratória, pode estimular a coordenação motora, pode aliviar as dores de cabeça, pode auxiliar o paciente a suportar as crises que uma doença crônica traz e também a suportar as dores físicas e psíquicas.

Desse modo, a música é um recurso terapêutico em potencial, por seu caráter de linguagem e de expressão e por possibilitar a conexão com conotações ligadas à área afetivo-emocional, relacionadas aos sentidos que o indivíduo e seu contexto atribuem ao fenômeno musical. (SekiI; GalheigoII, 2010).

No contexto dos cuidados paliativos, que tem por filosofia o cuidado integral ao paciente portador de doença grave que ameaça sua vida,  a música é utilizada como uma terapia complementar. As terapias complementares propiciam alívio de sintomas, tais como:  a ansiedade, a dor, fadiga e falta de ar.

Desse modo, a musicoterapia visa auxiliar o tratamento convencional e melhorar a qualidade de vida e morte desse paciente. O simples ato de ouvir música pode produzir mudanças positivas no humor, restaurar a paz e o equilíbrio emocional, potencializar a expressividade emocional do ser, promover o relaxamento e a expressão dos sentimentos, tais como: tristeza, raiva e luto.

A música também constitui um recurso de comunicação, que pode estabelecer a relação interpessoal, ajudar a retomar os sentimentos e lembranças do passado, proporcionando, assim, bem-estar e conforto ao enfermo e aos seus cuidadores/familiares. (Caires; Andrade; Amaral; Andrade; Calasans; Rocha, 2014).

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A música também pode facilitar, de diferentes modos, a despedida entre paciente e seus familiares. A música pode dizer o indizível em momentos em que a angústia é difícil de ser suportada, propiciando um ambiente com mais leveza. Para entendermos melhor sobre as questões que permeiam este tema eu tive a honra de entrevistar a psicóloga Cristiane Prade, uma estudiosa do assunto.

Um Musicoterapeuta inserido em uma equipe hospitalar visa contribuir para o tratamento do paciente da mesma forma que os outros terapeutas. No entanto, ele traz a arte em destaque para assim fazê-lo, o que promove por si só uma interação e um olhar diferentes dos profissionais de saúde, bem como dos pacientes e familiares.

A música é percebida, culturalmente, como algo a ser desfrutado, e em termos de educação como algo a ser aprendido. Ela nunca é vista como algo ameaçador. E é nesse espírito que os pacientes recebem a musicoterapia, como uma possibilidade de estarem mais próximos do que é saudável, de suas histórias e sua cultura.

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O espectro de atuação terapêutica através da música é muito vasto. O musicoterapeuta contribuirá de acordo com as demandas da unidade onde trabalha. Dessa forma, se o musicoterapeuta está em uma pediatria, pode focar em oferecer atividades que promovam integração entre as crianças e seus pais, enfrentamento da internação e de procedimentos invasivos, fazendo uso da música para explorar sentimentos, trazer familiaridade e contribuir para sensação de segurança da criança, entre várias outras intervenções.

Por outro lado, um musicoterapeuta inserido em uma unidade de reabilitação poderá trabalhar em parceria com fisioterapeuta, fonoaudióloga e/ou terapeuta ocupacional focando em coordenação motora, afasias, motivação para as atividades físicas, memória, alerta, além de outras tantas intervenções possíveis.

Na sua lida em hospital, quais eram os problemas emocionais, observados por você, que os pacientes em cuidados paliativos apresentam com mais frequência?

Pacientes internados que recebem cuidados paliativos estão enfrentando doenças muito graves em momentos de extrema fragilidade. Durante períodos em que os sintomas físicos são mais exacerbados e a equipe está buscando formas de melhor manejá-los, os pacientes lidam com sentimentos que afloram especialmente em função do que eles sentem no corpo. Por exemplo, o medo pode ser mais intenso para um paciente que sofre com falta de ar ou crises de dor.

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Quando os pacientes têm seus sintomas físicos bem manejados podem falar sobre o que estão sentindo e pensar a respeito da vida, da doença, expectativas e medos. Poderia falar aqui do que é mais descrito em literatura como raiva, sofrimento existencial, ou depressão por exemplo, mas, sendo mais prática destaco aspectos levantados em relatos de pacientes:

  • “Sei que vou me curar. Deus não me deu 4 filhos para me fazer morrer em pouco tempo”. Preocupações e angústias em relação à família; receio de decepcionar a família por não “conseguir” se curar; preocupações financeiras e com papeis nas relações familiares, medo de falar sobre a morte e assim tirar a esperança dos familiares.
  • “Eu quero muito ir para Bahia com a minha família. Curtir praia, mar…acho que vai dar depois dessa internação”. Outra questão fundamental é lidar com as perdas que vão surgindo ao longo do agravamento da doença, que costumam vir com novos sintomas que cada vez mais comprometem a autonomia e a qualidade de vida do paciente. Toda a vez que um novo sintoma aparece a esperança do paciente fica ameaçada. Não necessariamente a esperança de cura da doença, mas de um tempo suficiente para realizar um sonho, por exemplo.
  • “Eu não tenho medo de morrer, mas não quero sofrer quando chegar a hora”. Medo do sofrimento físico
  • “Eu não devo ter fé o bastante. Se tem várias pessoas que falam que conseguiram porque tinham fé…eu não devo ter, porque não estou conseguindo”. Dúvidas a respeito de fé e insegurança em relação a escolhas feitas na vida
  • “Sabe, eu sinto que estou descendo por um funil”. O medo da morte também aparece com frequência e alguns falam sobre isso abertamente, outros falam sobre isso de forma simbólica e tem os que preferem não falar sobre o assunto.

Muitas vezes a música é um recurso bastante útil para oferecer uma distância percebida segura pelo paciente para poder falar do tema. “Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, a gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu. A gente quer ter voz ativa, em nosso destino mandar, mas eis que chega a Roda Viva e carrega o destino para lá…”.

Uma paciente que sustentava um grande esforço para manter suas esperanças e evitava falar diretamente sobre seu medo do tratamento não ter sucesso, cantava essa canção de Chico Buarque em quase todas as nossas sessões, e finalizava nossos encontros se alimentando de uma outra canção: “Ninguém quer a morte, só saúde e sorte……Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita é bonita e é bonita…”.

Gonzaguinha já fez muito paciente extremamente fragilizado levantar da poltrona e cantar segurando o cateter de O2. Esses momentos, quando compartilhados com a família, são repletos de emoções e aproximam os presentes.

Em que sentido a música pode auxiliar um paciente em casos de demência como, por exemplo, doença de Alzheimer?

A música é um recurso maravilhoso, arrisco dizer que é a melhor estratégia para trabalhar com pacientes portadores de demência. Músicas familiares ajudam o paciente a se sentir mais seguro, estimulam memória e oferecem possibilidade de interação social. Muitas vezes familiares já não têm nenhum canal de comunicação com o ente querido e a música é a única portinha que permanece aberta.

É só começar a cantar para ver a transformação em um paciente que, muitas vezes, já não se comunica mais. Ele pode começar a bater palma no ritmo, cantar alguns versos, olhar para você e sorrir, conectar-se com ele mesmo e com o momento presente, conectar-se com as pessoas que ele ama durante o tempo daquela canção.

Ao ser estimulado pela atividade musical terapêutica ele pode trabalhar coordenação motora, marcha, linguagem, apresentar melhora de humor e mais disposição para se alimentar, por exemplo.

Quando e como determinar se a intervenção musical será interessante para este paciente? E como é feita a escolha musical?

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Na minha prática, com pacientes graves e em cuidados paliativos a intervenção musical acontece na medida do interesse do paciente e da possibilidade de o recurso musical fortalecê-lo e ser um facilitador do luto antecipatório. Muitas vezes o paciente entende que deve ter conhecimento musical e eu explico que não é o caso.

Outras vezes ele recebe a música como um bálsamo que o ajuda a se acalmar, a se conectar consigo mesmo, ou a se animar e sentir-se mais disposto. A música é sempre meu recurso de escolha para facilitar a comunicação entre familiares, por exemplo. Dessa forma, acalmamos os medos de falar sobre morte, saudade, arrependimento, culpa, amor, e as canções surgem como presentes.

Jobim, Chico, Vinícius, Milton, Eric Clapton, The Beatles, Coldplay, e por aí vai… as canções falam pelos pacientes e familiares. Muitas vezes é depois de cantar e ouvir em família as músicas escolhidas na sessão, que é possível falar sobre o que está acontecendo naquele momento com eles. A escolha das músicas é sempre do paciente e quando a família participa é deles também. Meu papel é entender a escolha musical e guiar os presentes para que as canções possam falar por eles. Muitas vezes é ajudar a criar o momento para que a família possa estar junta, falar de afetos, se despedir.

Como os pacientes e familiares recebem e compreendem esta intervenção terapêutica por meio da música?

Muitas vezes é com um sorriso no rosto e uma surpresa no olhar. “Nossa, mas você vai tocar para ele! ” Na nossa cultura a música é uma dádiva, não é algo associado com hospital, tratamento, etc. e de repente o paciente vê alguém tocando violão para ele. Ele se percebe valorizado de um jeito diferente.

Quando a família ou até mesmo a equipe entra no quarto e escuta as cordas soando suave em um volume confortável, o ambiente é diferente, muda a atitude de quem entra e está lá. Como mencionei anteriormente, muitas vezes os pacientes estão lidando com sintomas de grande desconforto.

A possibilidade de uma intervenção musicoterapêutica amplia o cuidado ajudando o paciente a sentir-se mais confortável. Por exemplo, se ao atender encontro o paciente com muita dor, a sessão de psicoterapia (previamente combinada) pode se transformar na sessão de musicoterapia; onde permaneço no quarto e ofereço a música como recurso para melhor lidar com o sintoma enquanto esperamos a medicação fazer efeito.

Você pensa que a intervenção terapêutica por meio da música pode favorecer o momento da despedida desse paciente que está se despedindo da vida?

É natural e cultural utilizarmos a música em rituais e transições. Mas, no contexto hospitalar, como qualquer intervenção, tem seus critérios. A música adequada é um cobertor que protege e embala a todos, amplia a sensação de segurança e conforto.  Na hora da despedida pode fazer grande diferença contar com a musicoterapia.

Houve um momento dentre tantos atendimentos realizados em sua carreira profissional que te marcou, tanto pessoal como profissionalmente?

Não houve um momento, houve muitos. São histórias lindas de pessoas e pacientes que guardo no meu coração. Poderia ficar horas aqui relembrando com você, Naná, cada uma das histórias. O privilégio de trabalhar em cuidados paliativos é que aprendemos cotidianamente sobre a importância de cuidar das relações, ser amoroso, desfrutar da alegria do momento e cultivar coragem.

Cada um dos pacientes que atendi me ensinou sobre viver de forma mais presente. O tempo e as canções que compartilhamos foram sobre a poesia da vida. Mas algo que guardo em mim com zelo é ser testemunha de momentos tão cheios de sinceridade e sentimento. Uma vez, um paciente muito grave pediu para ouvir uma canção que gostava muito, “Taça de prantos”.

Eu não conhecia essa música e fui para a internet para aprender. Ele era um paciente muito querido, do interior de São Paulo. Em uma reunião anterior com a equipe, tinha destacado a importância de seu filho de 11 anos estar presente, e finalmente tínhamos conseguido que a família estivesse reunida por alguns dias ou semanas no quarto do hospital.

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Na sessão seguinte eu toquei a música que ele tinha pedido – que falava de saudade, tristeza, perda. Ele estava sentado na poltrona e o filho estava no colo dele ouvindo a música. Quando terminou, ele se virou para o filho e disse: “Meu filho, eu quero que você seja um homem bom, que ajude a sua mãe na casa, que se dedique aos estudos, que seja valente”.

Nesse momento o filho começou a chorar e pediu perdão porque achava que não tinha sido um filho bom o bastante. E foi então que o pai fez a mais linda declaração de amor para ele e os dois choraram abraçados por um tempo.
Um pai que se despede da vida com a tristeza de não poder ver seu filho crescer, mas que o deixa com um legado de amor, de ter vivido a vida que queria ter vivido e de ter coragem ao se ver morrendo. Um filho que segue para a vida cheio de saudade, mas com a leveza de saber que foi o melhor filho que esse pai podia ter tido e sobretudo segue com o amor e a coragem que recebeu de seu pai.

Ser testemunha do momento em que essa realidade se concretiza dentro dessas pessoas é a maior honra.

Após esta conversa com Cris Prade, percebemos o quão importante é a inserção das terapias complementares na equipe que oferece cuidados paliativos, tendo em vista que o paciente e sua família, por muitas vezes, apresentam um grande sofrimento psíquico, emocional e existencial e a música pode ser uma poderosa ferramenta para expressar este sofrimento. Contudo, nos parece que o uso das terapias complementares ainda é pouco explorado no contexto hospitalar.

E, claro, muito se tem a caminhar quando se trata de cuidados paliativos. Nós profissionais da saúde precisamos conhecer e explorar esse campo de atuação para que possamos fornecer aos nossos pacientes um melhor atendimento, principalmente, num processo de finitude.




Psicóloga Especialista em Psicologia Hospitalar e Luto, Member of British Psychological Society. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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