Você já deve ter cruzado com alguma pessoa dessas em sua vida – talvez até tenha alguém mais próximo a você, cotidianamente – e, portanto, sabe o quanto é delicada a interação com aqueles que se acham os “detentores da verdade”.

Podemos até tentar expor nossa opinião ou ponto de vista, mas, no final das contas, parecerá inócuo, isto é, o outro sempre acabará puxando a linha de raciocínio para o seu lado e tentará, a todo custo, nos convencer de que estamos, invariavelmente, errados.

E você, leitor, por acaso, sabe o que está por trás desse tipo de personalidade?

É algo bem simples, me acompanhe.

Como já deve ser de seu conhecimento, o cérebro, ao longo de seu desenvolvimento, vai interpretando as situações a sua volta e, assim, elaborando as crenças, inicialmente mais primitivas e depois, mais complexas, sobre as pessoas e o meio ambiente. Como popularmente se denomina, os “juízos de valor” são pacotes de informação que nos acompanham ao longo de nosso crescimento e vão, aos poucos, se aglutinando uns aos outros, criando, como resultado final, um amplo e poderoso sistema de interpretação mental, ou seja, um verdadeiro filtro, no qual todas as experiências de vida que nos chegam são apreciadas.

Nele, há opiniões a respeito dos mais variados assuntos, como, por exemplo, nossa orientação religiosa, política, afetiva, comportamental, de gênero, entre outros, e, para que esse sistema possa funcionar adequadamente, procuramos sempre manter uma boa coerência entre todos esses valores.

Vamos novamente.

Um homem machista, por exemplo, para preservar sua opinião de superioridade perante as mulheres, sempre irá apontar em sua parceira algum aspecto que “justifique” a ideia de desigualdade. Assim, eventualmente, poderá dizer que seu trabalho é, de fato, “mais importante do que o dela”; que “sem ele, a família estaria em dificuldade”; ou ainda, acreditar que é papel exclusivo da esposa “cuidar integralmente da educação dos filhos”, uma vez que ele já colabora com “os recursos” da casa.

Perceba que tais julgamentos, nesse caso, se baseiam, o tempo todo, em uma premissa inicial da existência de um desnível entre gêneros, que reforça a posição “natural” de inferioridade da esposa, perpetuando, desta maneira, a “coerência” desse sistema mental de julgamentos e interpretações.

Caso você não saiba, eu até diria que esse processo de busca de harmonia de nossas crenças é bastante comum e natural a todos, pois sempre procuramos agir de forma a manter essa melhor integridade entre as ideias.

Todavia, junto às pessoas mais radicais e inflexíveis – as “donas da verdade” -, essa “estabilidade” de juízos, digamos, é muito mais quebradiça, gerando então, frente às ideias existentes, concepções e modelos mais rígidos e inflexíveis à mudança.

Pode parecer paradoxal, mas eu vou lhe dar mais detalhes.

Semelhante às cordas de uma raquete de tênis, por exemplo, quanto menos cordas existirem nesse encordoamento, mais “esticadas” elas precisarão estar para poder dar conta de, efetivamente, “rebater as bolas” que lhe serão arremessadas. Por outro lado, no caso de um encordoamento com maior número de fios, essa disposição exigirá, possivelmente, uma menor “tensão” (ou tração) entre todos eles, pois são mais eficazes no conjunto.

A personalidade mais rígida, assim, deriva de um sistema interno de coesão de valores que é estruturado com “menos cordas”, o que colabora para que seus princípios se apoiem em apenas alguns fios de tensão, fazendo com que a raquete então seja mais exigida durante o jogo e, portanto, mais vulnerável a ficar debilitada (se comparadas com aquelas que são, naturalmente, mais flexíveis e com um maior número de cordas).

Vejo isso todos os dias em meu consultório, ou seja, as pessoas mais radicais em suas opiniões são aquelas que apresentam os maiores graus de inseguranças e inquietudes.

As pessoas mais equilibradas e mais maduras, por outro lado, são aquelas que, depois de cometer os inevitáveis erros de comportamento, ainda conseguem rir de sua insensatez, sem que, com isso, suas identidades sejam abaladas.

Fez sentido agora?…

Infelizmente, esse tipo de “limitação” ou viés de interpretação – algo aparentemente tão pequeno – também é encontrado nas engrenagens de um problema muito maior: a intolerância.

Eu explico.

Essa falta de aceitação da diferença constitui as maiores tragédias registradas pela humanidade. Pois, em função de uma presumida “superioridade” de um povo em relação a outro, da “supremacia” de uma certa cor de pele ou gênero, da “hegemonia” de uma linhagem religiosa sobre as demais, muito sangue derramado foi justificado.

Assim, no dia em que conseguirmos desenvolver um pouco mais de empatia e assim, finalmente, formos capazes de entender que não existe apenas um universo, mas sim, um multiverso – ou seja, infinitas possibilidades e ilimitados pontos de vista -, possivelmente, nesse momento, conseguiremos incluir as diferenças sem que sejam vistas como ameaças diretas à nossa identidade.

Para concluir, eu diria que a difícil tarefa de conviver com os “donos da verdade” denuncia, igualmente, um pouco de “nosso” despreparo em aceitar um ponto de vista que, também, não se encontra alinhado com o nosso.

Assim como “eles”, “nós” também, urgentemente, precisamos procurar entender que, no fundo, o homem expressa muito mais suas limitações do que suas possibilidades.

Portanto, cada um oferece apenas e tão somente o que tem.

Uma opinião distinta da nossa é apenas e tão somente uma opinião divergente e compreender isso já é um grande passo. Muitas vezes, talvez nós é que sejamos os “donos da verdade”, sem perceber.

Pense nisso.




psicólogo e atua em consultório particular há 32 anos. Tem Pós-Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Atualmente trabalha junto ao PRO-AMITI do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP; Coordena o Núcleo de Terapias Virtuais (SP) e o Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo. Foi Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC). Publicou 13 livros sobre Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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