Filho – um amor indizível, um amor infinito, um eterno aprendizado sobre a arte de amar e educar, certeza diante das incertezas, calmaria em pleno caos, a mais preocupante e doce memória. Mas, às vezes, tão somente saudade…” (Nazaré Jacobucci)

Ao longo da nossa existência seremos confrontados com diversas perdas que podem ter significados e impactos muito distintos na vida de cada indivíduo. Entretanto, infelizmente, há alguns tipos de perdas que não recebem a devida atenção por parte da sociedade.

A perda gestacional e neonatal são fenômenos mais comuns do que se possa imaginar. Estima-se que a prevalência da perda gestacional varia entre 15 a 20% das gestações clinicamente diagnosticadas, atingindo até 30% das gestações com diagnóstico bioquímico. A maior ocorrência se dá antes da 12º semana gestacional. Quando a perda do feto ocorre entre a 1º e 22º semana de gestação é denominada perda precoce. Quando ocorre após este período as perdas são consideras tardias (Camayo; Martins; Cavalli, 2011; Serrano, 2016).

As mortes neonatais correspondem à morte de recém-nascidos que faleceram até 28 dias completos de vida. Com efeito, no que tange a Declaração de Óbito o Ministério da Saúde determina que o mesmo seja emitido quando a criança nascer viva e morrer logo após o nascimento, independentemente da duração da gestação, do peso do recém-nascido e do tempo que tenha permanecido vivo. E no óbito fetal, se a gestação teve duração igual ou superior a 20 semanas, ou o feto com peso igual ou superior a 500 gramas, ou estatura igual ou superior a 25 centímetros.

A perda de um bebê durante a gestação ou logo após o seu nascimento geralmente representa um fato marcante na vida de um casal. Este fato pode ser constituído por momentos traumatizantes que serão lembrados e temidos em uma próxima gestação. O processo de luto por perda gestacional comporta várias especificidades, pois a perda não passa apenas pelo bebê, mas também por todas as fantasias e expectativas que se criaram ao longo de vários meses, por vezes, antes mesmo de sua concepção (Santos, 2015).

Os pais enlutados têm de lidar com a perda real e simbólica do filho desejado e amado, e também com a perda da autoestima. Há um sentimento de fracasso com relação à proteção e ao cuidado em relação a este bebê. Outro sentimento muito importante vivenciado numa perda gestacional é o sentimento de culpa. De acordo com Lemos e Cunha (2015), alguns estudos sobre perda gestacional indicam que, sendo a mulher a pessoa que carrega o bebê em seu ventre, ela pode manifestar maior sentimento de culpa em relação à perda, se comparada ao homem.

A mulher pode inferir que ela cometeu alguma negligência e que fora ela a culpada pela perda. Inicia-se assim, uma busca incessante pelas causas que podem ter influenciado na perda do bebê. Com relação ao pai, este apresenta, comumente, uma resposta mais controlada à perda devido à necessidade de mostra-se “forte” para fornecer suporte à mulher.

Este é um processo de luto complexo, pois nem sempre o luto pela perda de um feto é devidamente reconhecido e validado pela sociedade. Contudo, é fundamental para a saúde psíquica dessa mãe o reconhecimento dessa perda. A mulher e o homem precisam ser acolhidos em sua dor e necessitam de um espaço para chorar, ficar triste, com raiva e, claro, revoltar-se com esta nova realidade tão dolorosa de ser vivenciada.

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A psicóloga Alexandra Leonardo faz um alerta: o que faz mais falta é a consciencialização de que estas mulheres estão extremamente frágeis, de que o processo não termina na urgência do hospital, mas que se vai refletir no futuro da mulher, eventualmente no do casal e até com impacto familiar e social. Por isso, o trabalho de luto é fundamental.

fasdapsicanalise.com.br - Perda Gestacional: um luto não reconhecido; uma dor invisível

Precisamos tomar consciência que é um filho que se perde e não uma gravidez que foi interrompida, e que a perda de um feto não é irrelevante. O texto abaixo escrito pela psicóloga Érica Quintans, que me autorizou a compartilhá-lo na íntegra, nos mostra a importância dos rituais de despedida numa perda gestacional e como estes são indispensáveis para a elaboração de um processo de luto.

“Os rituais de despedida da perda gestacional e neonatal”
Texto escrito por: Érica Quintans

“O ritual é definido como um poderoso ato simbólico que confere significado a certos eventos da vida ou experiências. São veículos poderosos que proveem estrutura e oportunidade para conter e expressar emoções. Permitem que a comunidade testemunhe e interprete um acontecimento. Os rituais são um direito, frequentemente, negado aos enlutados por perda não reconhecida (Doka, 2002 apud Casellato, 2015).

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Quando a morte ainda era domada (vista como natural; parte da vida) os rituais eram bem-vindos e faziam parte do processo de elaboração do luto. Hoje em dia nossa sociedade tem uma urgência com relação aos funerais, talvez uma tentativa de evitar o confronto com a dor da perda. Uma sociedade capitalista, sem tempo improdutivo a perder, totalmente amedrontada pela morte, culminando em pouco ou nenhum ritual.

Na perda gestacional e neonatal muitos acreditam que não há motivo para luto, como se isso pudesse ser medido pelo tempo de convivência com o filho, desconsiderando as fantasias e vínculos estabelecidos. Não é de se espantar que não haja espaço para rituais de despedida. Quando o bebê tem um tamanho e peso considerados suficientes para que seja enterrado, geralmente, o pai soluciona as questões burocráticas do serviço, e, por ainda estarem hospitalizadas, as mães não podem participar dos rituais. Isto pode auxiliar numa complicação da elaboração do luto, afinal não houve tempo e momento para se despedir, concretizar a perda, chorar sua dor, ser amparado e poder falar sobre o filho, os sonhos e o desespero em não tê-lo mais por perto. Poder dar um nome a este luto é muito importante na elaboração da perda, colocando o enlutado em um lugar central, de protagonismo e validação (Casellato, 2015).

Mesmo após o enterro diversos rituais podem ser feitos, se assim o pai e mãe se sentirem à vontade. Eles encontrarão uma forma que tenha sentido e significado para eles, pois o processo de luto é muito singular, mas entre as mais comuns formas de ritualizar a perda de um bebê temos: soltar balões; colocar fotos em um porta retrato; plantar uma árvore ou ainda fazer uma caixa de lembranças, com roupinha, sapato, fotos, fitas e cartas/bilhetes para o filho que se foi. Mais importante do que O QUE fazer é COMO fazer, sendo fundamental ser algo que tenha sentido para quem passou pela experiência da perda”.

(Publicado em: Site – Do Luto à Luta: Apoio à Perda Gestacional e Neonatal em 27.07.16)

Como pudemos observar, a perda gestacional e neonatal possuem um caráter multifacetado que está muito além do que conseguimos descrever na literatura. Na perda gestacional, torna-se imprescindível que os profissionais de saúde estejam devidamente informados sobre a subjetividade e a complexidade dessa perda, para que possam fornecer assistência adequada desde o momento do diagnóstico até a alta hospitalar. Além disso, é claro que o apoio dos familiares e amigos próximos é de fundamental importância, validando o real significado da perda para esses pais, ou seja, de que eles perderam um filho e não um embrião.




Psicóloga Especialista em Psicologia Hospitalar e Luto, Member of British Psychological Society. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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