O ato de seu auto fotografar através dos telefones celulares já é uma prática bastante comum e foi batizada, como bem sabemos, de selfie, ou seja, autorretratos extraídos dos mais variados momentos de nosso cotidiano.

Até aqui, tudo normal, nenhuma novidade.

Ocorre que esse habito começa a chamar a atenção em alguns casos específicos, dado seu exagero. Assim, em 2014, o site da Associação Americana de Psiquiatria publica, pela primeira vez, uma crônica batizando a conduta exagerada das selfies como selfities, ou seja, um comportamento que revela “um desejo obsessivo compulsivo de tirar fotos de si mesmo e postá-las nas mídias sociais como forma de maquiar a falta de autoestima e, com isso, preencher o espaço através da exposição da intimidade pessoal” (pág 1). (1)

O mesmo artigo classifica então esses autorretratos como “patológicos” e propõe assim em três categorias de intensidade, a saber:

a) Um primeiro nível mais leve denominado de borderline, onde a pessoa se auto fotografa pelo menos, três vezes por dia, mas, não posta os retratos nas redes sociais.

b) Um segundo nível denominado de agudo, onde a pessoa se auto fotografa também as mesmas três vezes por dia, mas, dessa vez, as compartilha nas redes sociais e, finalmente,

c) Um nível mais intenso que se denomina de crônico, ou seja, uma necessidade incontrolável de se auto fotografar e de postar nas mídias sociais, mais de seis vezes por dia. (1-2)

Vamos compreender melhor

Embora seja um fenômeno universal presente em todas as culturas, as selfies são encontradas em várias categorias, ou seja, cumprem uma função de exaltar certos contextos políticos específicos, sociais, de raça e gênero, luxo e, finalmente, exibindo traços ou características pessoais.

Caso você não saiba, em 2016 foram tiradas 93 milhões de selfies por dia, o que representaria, aproximadamente, 2.583.333 rolos de filmes (3). Em 2017, 1.3 trilhões, foi o número de vezes que os dedinhos ansiosos dos usuários acionaram suas máquinas fotográficas nos celulares. (4)

Talvez você acredite serem apenas fotografias, entretanto, não é o caso. Os retratos que vão para web, em sua maioria, são retocados antes de serem postados, ou seja, neles, são adicionadas cores, contrastes, sombras e uma série que efeitos fotográficos que ajudam a criar uma “aura” de prestigio e reputação daqueles que a postam, exaltando assim a individualidade e importância do fotografado. (5)

Algumas pesquisas, inclusive, já apontaram anteriormente a existência de uma correlação entre a quantidade de selfies tiradas por uma pessoa e certos traços de narcisismo (aqueles que se auto valorizam excessivamente), ou seja, quanto mais fotos, mais narcisista uma pessoa é. (6) Outras investigações, por exemplo, apontam o comportamento excessivo como forte indicativo de indivíduos portadores de sentimentos de menor consideração e de pouca representação social e, assim, ao se sentirem como pouco atrativas e valorizadas, “dão uma mãozinha”, digamos assim, através de uma autopromoção “forçada” nas fotos usando em certos cenários de fundo, exagerando nas emoções e, finalmente, criando um glamour artificial nos ambientes retratados. (2)

Vamos lembrar que a vida social é, antes de mais nada, um meio onde a competição é uma das marcas mais importantes. Nesse sentido, a medida em que se torna cada vez mais difícil competir com aquilo que vemos postados nas redes sociais a respeito da vida dos demais, tentar resgatar um pouco da simpatia pessoal através das imagens, torna-se, portanto, algo primordial.

Você já deve ter notado isso tudo que estou dizendo.

Vamos pensar então?

É possível que as selfies tenham se tornado uma manifestação social que evidencia a obsessão pela aparência, somado à exibição da vida privada na forma de reality-shows-pessoais, arquitetando, como resultado a demonstração da “exuberância de um momento” vivido pela pessoa (“especial” que é, claro).

Muitas vezes, entretanto, o tiro sai pela culatra.

Eu explico.

Ficamos tão ocupados controlando a imagem que iremos revelar ao mundo que acabamos perdendo o verdadeiro contato com os momentos que constituem a singularidade da vida concreta. Quando capturar algo junto ao celular tem a prioridade sobre o que acontece à nossa volta, pode ser um forte indicativo de um problema real, ou seja, corre-se o risco de passamos a ficar mais conectados com as imagens e desconectados de nós mesmos.

Vivendo, portanto, um verdadeiro dilema: como eu posso esperar que os outros prestem atenção a mim se nem eu mesmo consigo descrever o que está acontece à minha volta?

Documentar a experiência não pode, jamais, ser mais importante do que vivê-la.

Haveria então um o limite entre o normal e o patológico quando o assunto é registrar a vida através dessas fotografias?

Em tempos de tecnologia, confesso, que não é das tarefas mais fáceis determinar o que seria uma expressão natural e espontânea de um comportamento social emergente – selfie -, de quando um excesso se transforma em doença – selfities – indicativo, possivelmente, de uma nova patologia.

Se uma pessoa, segundo estimativas, irá tirar 25 mil selfies ao longo de sua vida, talvez algo não esteja lá muito equilibrado, não acha? (8)

Para se pensar.

Referências
1. https://adobochronicles.com/2014/03/31/american-psychiatric-association-makes-it-official-selfie-a-mental-disorder/ 2. https://link.springer.com/article/10.1007/s11469-017-9844-x 3. http://www.adweek.com/digital/rawhide-selfies-infographic/ 4.http://uk.businessinsider.com/12-trillion-photos-to-be-taken-in-2017-thanks-to-smartphones-chart-2017-8 5. https://cristianonabuco.blogosfera.uol.com.br/2015/01/07/a-psicologia-dos-selfies-autoexpressao-ou-sinal-de-problemas/ 6. https://www.psychologytoday.com/blog/fulfillment-any-age/201608/are-selfie-takers-really-narcissists 7. https://www.independent.co.uk/life-style/gadgets-and-tech/obsessive-selfie-taking-classified-as-a-mental-disorder-what-we-can-learn-from-a-hoax-9243442.html 8. https://www.teenvogue.com/story/samsung-number-of-selfies-lifetime

(Imagem: Mahmoud Gamal)




psicólogo e atua em consultório particular há 32 anos. Tem Pós-Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Atualmente trabalha junto ao PRO-AMITI do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP; Coordena o Núcleo de Terapias Virtuais (SP) e o Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo. Foi Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC). Publicou 13 livros sobre Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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