Quando Caravaggio pintou o quadro “Narciso”, no século XVI, dificilmente preveria que o ser individual proclamado pela modernidade atingiria o grau que presenciamos na contemporaneidade.

Naquela época, o que os artistas e pensadores desenvolviam nas suas obras era algo muito mais relacionado ao desenvolvimento da individualidade, isto é, da consciência subjetiva do sujeito, que do individualismo que se tornou um dos grandes estandartes da sociedade que habitamos.

O desenvolvimento da consciência do indivíduo, centro de um mundo organizado pela racionalidade, pode ser observado em diversos pensadores, desde Hobbes e o seu “O homem é o lobo do próprio homem”, passando por Descartes e o “Penso, logo existo”, até chegarmos a Shakespeare com o “Ser ou não ser” de Hamlet.

Esse processo de construção e/ou expansão da individualidade do sujeito moderno foi um processo importante, uma vez que ainda que o sujeito se faça no todo, é necessário considerar a subjetividade celular que origina esse mesmo todo, a fim de que a partir de um processo dialético entre o todo e a parte ambos possam ser melhor compreendidos.

O que provavelmente os modernos não consideravam é que a consciência individual fosse exponenciada a tal ponto que a sua própria consciência pudesse ser dissolvida, haja vista, como exposto, a necessidade permanente do diálogo entre o todo e parte para que ambos possam existir e ser individualmente compreendidos.

As novas tecnologias desenvolvidas nas últimas décadas, com a criação e difusão das tecnologias da informação, são determinantes para que possamos entender o processo que separa a formação da necessária individualidade colocada pelos modernos e o individualismo – não oriundo do período histórico mais recente, mas desenvolvido sobretudo nesta quadra da história – e contrariamente importante para o desenvolvimento da autoconsciência.

Sendo assim, a “relação” que estabelecemos com as tecnologias que nos circunda é algo muito próximo (ou para além) daquilo que Caravaggio representou no seu quadro há mais de quatrocentos anos.

O uso, ou melhor, a relação de uso que possuímos com todo o aparato tecnológico que dispomos nos coloca em uma posição “ensimesmada”, narcísica, de modo a procurarmos o tempo inteiro uma reafirmação do nosso eu, e na mesma medida a desconsideração do eu dos outros.
Aliás, o outro é “considerado”, mas tão somente para nos referenciar por meio de “curtidas” e seus sinônimos presentes nas redes sociais.

Esse processo – que leva constantemente a auto exposição exacerbada, pois já não basta estarmos nos lugares ou simplesmente fazer coisas, é preciso mostrar aos meus curtidores onde estou e o que faço – fez com que houvesse uma atualização do cogito cartesiano, passando do “Penso, logo existo” para o “Posto, logo existo”.

Além disso, passa a ocorrer também um distanciamento do mundo que nos circunda, do momento que vivemos, dado que se aquilo que é feito precisa ser obrigatoriamente referenciado em alguma rede social, a coisa em si é menos importante do que a sua existência em outra realidade.

Evidentemente, existe bom uso das novas tecnologias, inclusive, como forma de desenvolvimento da autoconsciência. No entanto, o que se observa de maneira geral não é isso, mas antes o desenvolvimento do individualismo, fator no qual reside o problema, pois, como dito, sem a consideração do outro como sujeito é impossível desenvolver a própria consciência e a individualidade.

As redes sociais, nesse prisma, possibilitam a autoafirmação dos indivíduos, embora ela se torne falsa na medida em que não se estabelece nenhuma relação com o outro.

Todavia, perceber ou questionar o modo como utilizamos as novas tecnologias é algo extremamente difícil, haja vista o entorpecimento que elas produzem, impedindo, consequentemente, o desenvolvimento da consciência que prometera. Dessa maneira, o individualismo encontra campo fértil para se reproduzir, em que indivíduos ficam entorpecidos com as suas próprias imagens, assim como no mito de Narciso.

É preciso destacar, entretanto, que não se trata de estabelecer uma relação maniqueísta em relação ao uso das novas tecnologias; mas antes, problematizar o modo como o seu uso contribui para que o individualismo se fixe com uma das grandes ideologias do nosso tempo, contrariando a ideia de desenvolvimento de uma consciência individual, uma vez que esta só pode existir a partir da relação estabelecida com o outro.

Assim, é imprescindível que haja uma maior problematização em relação ao modus operandi do mundo tecnológico, a fim de que ele possa ser, de fato, um instrumento de desenvolvimento e respeito das subjetividades, e não – contrariamente – um elemento para que nos tornemos reproduções em 3D da pintura de Caravaggio.




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