Vasilisa, A Bela é um conto russo de Alexander Afanasyev, que conta a história de uma menina – Vasilisa – que perdeu sua mãe e dela ganhou uma boneca que a auxiliou a lidar com sua madrasta e irmãs postiças e também com a bruxa Baba Yaga.

Vasilisa ou Vassilissa, a Bela ou a Sábia, juntamente com a bruxa Baba Yaga, são duas das figuras mais famosas do folclore russo, utilizadas em vários contos de fadas.

O início do conto se assemelha bastante a outro conto famoso: Cinderela.

A menina fica órfã de mãe e passa a viver com uma madrasta e suas três filhas, que passam a persegui-la e a infringir todo tipo de tortura emocional e escravidão.

A morte da mãe e a substituição por uma madrasta é um tema recorrente em contos de fadas. Vemos isso em Cinderela, Branca de Neve e em Rapunzel, onde a mãe verdadeira some da história e uma bruxa assume seu lugar.

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O diferencial é que nesse conto temos a boneca. Ao morrer sua mãe lhe dá uma boneca que a auxilia em sua jornada.

Essa boneca pode ser uma herança psíquica, uma intuição e conhecimento interior, passados de mãe para filha. Algo sobrenatural que sobrevive a morte da mãe boa simbólica.

Esses contos onde a mãe morre, mostram que deve morrer a identificação da mulher com sua mãe, para que possa desenvolver sua personalidade. É a saída do paraíso materno da infância.

Essa benção materna junto com a boneca formam um par de opostos à bruxa e à madrasta. Esse duplo aspecto feminino é que inicia a menina.

A mãe boa se transforma em símbolo, em benção, que passa a auxiliar a estruturação da personalidade da menina, que está se tornando mulher.

Ai entra em cena a madrasta ou a bruxa, que simboliza a mãe terrível, ou seja, a realidade cruel da vida, o ciclo vida e morte, as doenças do corpo, a crueldade da natureza e o quanto somos meros mortais frágeis.

Mas a mãe terrível é extremamente importante para o nosso desenvolvimento psíquico; sem ela não assumimos a responsabilidade de ir para o mundo, de estar só. Assim aprendemos a deixar morrer o que precisa morrer.

A iniciação de Vasilisa, com a morte da mãe boa, ensina a mulher a ficar só para que descubra sua forma de cuidar de si mesma, e assim posteriormente se tornar ela própria mãe.

O nome Vasilisa é de origem grega e significa “Rainha”. A Rainha é uma mulher madura, que já não é menina e está pronta para assumir seu reino, ou seja, sua vida, seu trabalho, seus amores e sua riqueza de alma. É segura de si e de sua feminilidade. É mãe, mulher, senhora e soberana dentro do seu reino, da sua casa.

A iniciação feminina, diferentemente da masculina, acontece, como nesse conto, no aprendizado do ciclo da vida e da morte, pois a mulher contem em si os atributos da Grande Mãe naturalmente em seu corpo e psique.

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O protótipo da iniciação feminina seria o parto, quer a mulher dê a luz ou não literalmente, pois a mulher sente a natureza em seu corpo como um todo, diferentemente do homem.

A bondade extrema de menina, é um aspecto do arquétipo feminino visto em vários mitos e contos de fadas.

A bondade e a generosidade extremas, precisam ser combatidas por meio do confronto com nosso lado sombrio, que vemos no egoísmo da madrasta e das irmãs. Ser boazinha demais não é positivo para o desenvolvimento da mulher.

Esse egoísmo reprimido – simbolizado pela madrasta e irmãs –pode ser muito positivo para a mulher. Sem isso a mulher passa a atender os desejos de qualquer pessoa e esquece de si mesma entrando em uma alienação profunda.

Um aprendizado que temos também com essas princesas que realizam os serviços domésticos sem se queixar, é o de que precisamos algumas vezes aceitar a situação como ela é, limpa-la, organizá-la e colocá-la na rotina. Limpar e organizar nossa casa psíquica, nossas emoções.

Outro fator de muita relevância para compreendermos também é o significado da boneca. Para a menina, a boneca é considerada um suporte para a projeção dos fantasmas da maternidade e da relação com a mãe, pois se observarmos bem, elas imitam em suas brincadeiras a relação mãe e filha.

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Na verdade, a relação da criança com qualquer objeto, como boneca, ursinho, paninho, ou qualquer outro objeto, é a primeira projeção onde a criança deposita uma força mágica e transcendente.

A madrasta e as irmãs são também um poder persecutório que começa a combater a realização interior desde seu aparecimento. Muitas vezes quando estamos nos desenvolvendo, o exterior começa a se levantar em críticas e gerar duvidas em nós, isso porque em nosso interior há dúvidas também, medos e insegurança.

O conto mostra como sermos heroínas e enfrentarmos nossos medos e dúvidas.

Vasilisa é então, enviada a floresta para se encontrar com esse um aspecto sombrio feminino, a Baba Yaga.

A Baba Yaga apresenta características da Grande Mãe antiga. Ela é boa e má ao mesmo tempo, tudo depende da atitude do heroi ou heroína frente a ela.

A atitude de bondade excessiva, cultivada principalmente em sociedades patriarcais que primam por um feminino subserviente, precisa se encontrar com esse lado Megera da Grande Mãe, que vemos principalmente na natureza.

Ao ir para a floresta entra em contato com seus instintos e aprende a confiar neles. Ela alimenta a boneca, ou seja, ela alimenta esse instinto de preservação herdado da mãe e segue em rumo a individuação.

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Ao chegar à casa da bruxa ela encontra um cavaleiro branco, um vermelho e um negro, remetendo as fases alquímicas albedo, rubedo e nigredo. Vasalisa vai sofrer uma transformação profunda, ela vai passar da inocência (albedo) à noite escura da alma (nigredo).

A casa de Baba Yaga pousa sobre pernas de galinha, que gira quando bem entende. Nos sonhos, o símbolo da casa reflete a organização do espaço psíquico habitado por uma pessoa, tanto no consciente quanto no inconsciente. Essa casa é um ser vivo, transbordante de entusiasmo, de alegria e vivacidade. Próxima ao nível animal, a casa é a estrutura do inconsciente que despertará em Vasilisa a chama do insight.

A Baba Yaga então surge em um pilão voador, que representa um útero simbólico. Algo feminino onde se mói os grãos, simbolizando o ato de nos sentirmos triturados, moídos por algo e reduzidos a pó.

Quando iniciamos nosso desenvolvimento nos confrontamos com nossas sombras, nossos “pecados”, nosso lado obscuro, e isso causa culpa e contrição. O ego é reduzido a pó para então renascer de forma mais madura. O ato de o ego ser moído e reduzido a pó é necessário para que amadureçamos. É isso o que o arquétipo da mãe terrível faz, ela nos amassa e nos mói para que nos desidentifiquemos da nossa persona iluminada e infantil. Quem não está a altura desse desafio é engolido por ela.

Vasalisa então é deixada a noite para separar os grãos. O tema da separação dos grãos vemos também no conto Cinderela e Amor e Psique.

Esse ato é muito importante na vida da mulher. É um trabalho de discriminação, estabelecer ordem e leis internas. Saber aquilo que é seu e o que é do outro, o que é de si própria e o que ela herdou da família, o que ela gosta, o que ela busca e não o que lhe impuseram como verdade. Isso representa então, esclarecer uma situação, separar as coisas. Isso evita que as situações fiquem confusas, mas se elas ficarem a mulher deve se perguntar por que a situação chegou a ficar daquele jeito.

Os grãos estão ligados a terra e a Grande Mãe. Sendo símbolo dos mortos e da ancestralidade. Grãos de papoula se associam ao mundo dos mortos e dos espíritos.

A mulher então aprende sobre o ciclo morte e vida, pois ela tem o poder da vida e da morte sobre os seres que a cercam, tanto psíquica como física também. É então importante tomar consciência de que ela tem poder sobre o clima ao seu redor. Em toda mulher a parte escura do Self tem o poder de desejar a vida e a morte.

O par de mãos que aparecem no conto, indica que se trata da crueldade da Baba Yaga e seu espírito sanguinário, que também se refere a natureza e seus aspectos cruéis. É a sombra abissal da natureza por trás da Baba Yaga, que só podemos olhar com terror. A natureza mata cruelmente e dá a luz a belas coisas.

Vasalisa também faz algumas perguntas à velha bruxa, e Baba Yaga que “saber demais pode envelhecer a pessoa antes do tempo”.

A curiosidade feminina nos contos de fadas costuma ser punida, diferentemente da masculina. A heroína quase sempre paga com a vida.

Isso significa que há uma quantidade determinada de coisas que todos deveríamos saber em cada idade e cada estágio das nossas vidas. E isso é um grande aprendizado para o feminino.

A menina pergunta sobre os cavaleiros e não sobre as mãos; nesse momento ela refreia sua curiosidade graças à boneca. Existem mistérios sobre a natureza feminina que devem permanecer um mistério. Ai é que reside o encanto feminino.

O feminino deve aprender a guardar seus segredos, principalmente em relação aos seus mistérios de vida e morte. No campo dos relacionamentos a curiosidade indiscriminada pode ser fatal.

Baba Yaga então dá a menina uma caveira com o fogo, quando descobre a benção em sua casa – a boneca.

A bruxa não repele a benção em si, mas o lado “mãe boa demais” presente ali. Sua natureza não aceita aquilo. Ela prefere não estar próxima demais da luz, ela é um lado sombrio, mas assim como a mãe de Vasalisa, a bruxa dá à menina uma espécie de benção também, que a auxilia assim como a boneca. Ela recebe uma parte do poder selvagem da Deusa Megera, pois aprendeu com ela.

Ambas – boneca e caveira – formam a completude do materno: o lado luz e sombra, assimilados e integrados pela menina.

Ao retornar à casa da madrasta ela sente medo, o que é bastante natural, mas a caveira a tranqüiliza. Isso mostra que ela assimilou e respeitou essa força da natureza.

A caveira é um símbolo da morte e da ancestralidade. A caveira traz a luz para a casa e seus olhos fixam na madrasta e nas filhas até que elas virem cinza. Seu olhar queima, destrói.

Vasalisa desceu até as suas sombras, conheceu sua crueldade. Ela era vítima dos outros por ser ingênua. Na verdade, ela era cruel consigo própria. O elemento sombrio nos faz sermos mais íntegros conosco mesmo. Conhecer nossa sombra nos traz o conhecimento da sombra dos outros.

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Vasalisa não age por conta própria em sua vingança, mas quem age é caveira, com seu olhar que queima. Ela dá a corda para as mulheres se enforcarem.

O conto diz que devemos nos abster de nossa ânsia de poder, e que a própria psique se encarrega de trazer a vingança. A pessoa cai em sua própria avidez, o mal acaba sempre se destruindo.

A seguir Vasalisa volta a encontrar a mãe boa que cuida dela na cidade. Ela simboliza uma velha sábia que intermédia entre Vasalisa e o rei, que é o lado masculino positivo da mulher.

O conto então, nos ensina, que precisamos descer até a nossa natureza mais interior, encontramos com a Megera para aprendermos a deixar morrer aquilo que não nos serve mais. Aprendermos os mistérios da vida e da morte e o organizar de nossas emoções e ideias. Algo que somente o feminino consegue fazer com maestria.




Hellen Reis Mourão é analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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