É possível controlar os próprios desejos? Essa é premissa principal de Gypsy, série  da Netflix, na qual a psicologia é abordada de vários ângulos diferentes.

Jean é uma terapeuta de classe média, casada com Michael que é a exemplificação do marido perfeito. Juntos têm uma filha, Dolly, que tem transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, além de não se encaixar no gênero feminino.

Mesmo com os problemas enfrentados com a filha por causa do preconceito das mães de suas coleguinhas de escola, Jean tem aparentemente uma vida tranquila e equilibrada. Porém, nada é tão belo quanto na superfície.

Jean não se contenta com as informações dadas por seus pacientes. Ela deseja saber mais, quer conhecer aquelas histórias além do que lhe é transmitido e com isso, passa a se envolver com as pessoas mais próximas de seus pacientes.

À princípio, apesar das inúmeras queixas dos profissionais da área sobre a série confundir os leigos e contribuir com a ignorância que existe a respeito da terapia ao colocar como protagonista uma profissional claramente antiética (li diversos comentários negativos sobre a série, vindo de psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e afins), achei que deve ser normal a vida pessoal dos pacientes exercer tanta curiosidade para uma terapeuta.

Afinal, ela escuta suas histórias semanalmente, passa a conviver de certa forma com eles e acaba criando elos emocionais com essas pessoas. Por mais que seja uma relação profissional, o psicólogo também é um ser humano de carne, osso e sentimentos e o apego é uma possibilidade de qualquer relação.

Não sou psicóloga, portanto, não posso responder por eles, mas confesso que no lugar deles eu ficaria tentada a conhecer pessoalmente as pessoas próximas aos meus pacientes.

Sem querer fazer o papel de advogada do diabo, mas já fazendo, imagina passar semanas ouvindo pessoas sendo citadas, tanto de forma depreciativa quanto elogiosas, numa sala de terapia; você também não se sentiria curioso pra saber se elas são realmente tudo o que dizem delas ou se as críticas feitas à elas são infundadas?

Pode até ser contra as regras, mas lembre-se; se tem uma coisa que Gypsy não tem a pretensão de ser, em nenhum momento, é politicamente correta.

Quando não passa de uma curiosidade saudável e até natural, é normal. Faz parte da natureza humana. O problema começa a partir do momento que a linha tênue entre curiosidade e invasão da vida alheia extrapola todos os limites.

E é isso que acontece com Jean. Ela se envolve tanto com os problemas de seus pacientes, que passa a criar uma dupla identidade chamada Diane Hart; uma jornalista, solteira, sem filhos, bissexual e viciada em café, que ao contrário da doutora Jean, não tem nada que a prenda. É livre como ela gostaria de ser.

Diante disso, ela vai se aproximando da filha de uma paciente e da ex namorada de outro paciente a fim de averiguar de perto quem são de fato aquelas pessoas. Conforme cria intimidade com elas, descobre o quanto são parecidas com ela mesma e porque estimularam tanto sua curiosidade.

Sidney, representa a faceta aventureira e desapegada de Jean, enquanto Rebecca se sente sufocada pela mãe da mesma forma que Jean se sentia pela dela. É mais fácil pra ela entender as duas do que compreender Sam e Claire, que são seus pacientes e com quem ela deveria realmente se preocupar.

Mostrando, assim, que não só jornalistas penam para serem imparciais, psicólogos também precisam se vigiar o tempo todo para não correrem o risco de se envolverem demais com o que ouvem a ponto de se verem refletidos em tais histórias e por causa disso, analisarem os fatos de forma parcial demais.

Quando mais nos identificamos com algo ou alguém, mais temos vontade de defende-lo, perdendo nossa neutralidade.

A protagonista se identifica tanto com Sidney, que passa a se relacionar com ela sexualmente e afetivamente. Ambas são volúveis, têm dificuldade em criar vínculos duradouros, não suportam a rotina advinda do compromisso e responsabilidades, gostam de ser venerada pelos outros como forma de manter o controle em suas mãos e principalmente, sentem prazer em tornar as pessoas obcecadas por elas como se fossem uma espécie de vício.

“Talvez não você literalmente, mas a parte de mim que é como você, não tenha aguentado o casamento. Eu queria explorar, vagar por aí. Não ficar parada. Você não vive de acordo com as mesmas regras de praticamente todos que conheço. E não sei o que há em você, mas você tem essa virtude intocável que não sei explicar, que me faz lembrar de mim ou de como eu era.”

Além do fato das duas serem extremamente egoístas de não permitirem que quem elas não querem mais sigam com suas vidas e sejam felizes.

Jean estava insegura em relação a se casar ou não com Michael, mas não aguentou a possibilidade de vê-lo atraído por outra mulher sendo que ela mesma pediu um tempo pra ele. Já Sidney, depois de rejeitar inúmeras vezes Sam e resolver terminar com ele, não aceita que ele volte a namorar Emilly.

As duas não toleram serem esquecidas. Rejeitam sem piedade, mas não admitem serem rejeitadas. Por isso que se sentem tão atraídas uma pela outra muito rápido, pois uma é o espelho da outra da mesma forma que Michael é como Sam, pois os dois são o oposto das duas; certinhos e centrados.

A série aborda o tempo todo a temática do vício, todos os personagens são viciados em algo ou alguém. Os três pacientes de Jean têm uma obsessão que ocupa a mente e as sessões de terapia deles na maior parte do tempo.

Sam é viciado em Sidney, Claire é viciada na própria filha, Rebecca, Allison é viciada em drogas, enquanto Jean é viciada na vida de seus pacientes e em manter uma dupla identidade. Gypsy é, acima de tudo, sobre uma terapeuta viciada que trata pacientes tão viciados quanto ela.

O ritmo da série é bem ágil (não achei lento como muitas críticas por aí disseram), os episódios têm quase uma hora de duração, mas conseguem te prender tranquilamente na trama.

Conforme você vai se sentindo instigado a saber o que Jean é capaz de fazer e começa a se surpreender com suas atitudes e manipulações, fica impossível não maratonar a série toda de uma vez, ainda mais que só tem 10 episódios.

Termina com vários ganchos pra uma segunda temporada (Netflix, não cancela pelamor!), na qual, se tiver, deve dar mais detalhes sobre o passado de Jean e principalmente, sobre sua relação com sua ex paciente misteriosa, Melissa Saugrave.

A abertura é maravilhosa, apesar de ter sido também criticada por ser um pouco “novelesca” demais, o que pra mim não é um ponto negativo. A trilha sonora, tanto da abertura quanto dos créditos finais dos episódios também é outro ponto alto da série.

Sem contar que Naomi Watts foi muito bem escolhida para o papel. Ela dá o tom certo para a protagonista, sem excessos nem limitações. Conseguiu, impecavelmente, fazer duas personagens em uma só.

A questão do conflito de identidade de Dolly foi bem inovador em se tratando de uma série, pois pelo menos eu, nunca tinha visto identidade de gênero e sexualidade sendo abordado no período da infância em nenhuma outra série.

É ótimo para o público mais conservador entender que essas questões surgem desde muito cedo sem que a pessoa tenha condições de escolher o que pretender ser.

Nessa temporada o tema ainda foi pouco explorado, apesar de já ter mostrado o preconceito que o indivíduo e seus familiares enfrentam da sociedade mesmo em se tratando de uma criança de apenas oito anos que não se identifica com o gênero no qual nasceu, mas acredito que nas outras temporadas isso deve ser mais aprofundado.

Gypsy é uma série para estudiosos, profissionais e simpatizantes da psicologia. Até para os que esqueceram da licença poética e estão criticando-a pela questão da falta de ética da terapeuta, é interessante para aprenderem o que nunca devem fazer se forem terapeutas.

Por outro lado, a série se preocupa em abordar a psicologia por várias perspectivas diferentes; mostra a visão da terapeuta sobre os pacientes, a visão dos pacientes sobre ela, a visão das pessoas próximas a eles sobre a terapia, a visão da família da terapeuta sobre seu trabalho e por fim, a visão dos seus colegas de profissão e supervisores sobre os pacientes.

Sem contar que apesar de Jean ser claramente uma mulher perturbada, cheia de conflitos internos não resolvidos e mais desequilibrada que seus pacientes, nem todas as suas manipulações são negativas. O único paciente com quem ela mostrou ter falha de caráter e ser traiçoeira foi com Sam.

Porque ela ajudou, da maneira dela, aproximar Claire da filha. Mesmo fazendo uso de mentiras para conseguir tal feito, a intenção dela era fazer Rebecca reconhecer as qualidades da mãe e com isso, trazer um pouco de alegria para a vida de Claire. Já com Allison, ela também tentou ajudar de alguma forma, chegando ao ponto de se preocupar com a garota como se fosse tão filha dela quanto Dolly.

Jean, obviamente, não é a pessoa mais adequada para comandar uma sessão de terapia, pois antes de tudo, ela mesma precisa ser tratada. Entretanto, também não a considero uma sociopata maniqueísta como algumas críticas disseram.

Ela é calculista, manipuladora, muitas vezes inescrupulosa, e tem uma certa frieza ao agir, só que ao mesmo tempo é alguém fragilizada e insegura, que tem dificuldade de controlar seus desejos, assim como seus pacientes.

É importante, também, para mostrar ao público que até profissionais da área, que estudaram a fundo a mente humana, estão sujeitos a falhas e vícios como qualquer um e, por isso, também precisam de acompanhamento psicológico, para tratar seus pacientes com mais eficácia.

Então, se você se interessa pelo assunto, esqueça o politicamente correto e dê uma chance à Gypsy!




Estudante de Letras da UERJ, metida a astróloga graças (ou não) ao seu escorpião com ascendente em peixes e lua em aquário. Viciada em séries a ponto de se recusar a aceitar a "morte" de Lost e Dexter até hoje. Precisa de injeções diárias de realidade pra não ser abduzida de vez pela Terra do Nunca. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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