Por que a linguagem atual parece tão impotente, tão ineficaz? Por que as conversas se tornaram tão superficiais, e os discursos, tão vazios?

A origem da linguagem se manifesta em toda experiência emocionalmente intensa como vocalizações espontâneas de êxtase, lamentação, alegria, medo ou raiva. Tais vocalizações surgem quando as palavras parecem incapazes de expressar o que sentimos, quando as emoções ultrapassam as inibições culturais ou, simplesmente, quando “perdemos o controle”. Não são realmente palavras, mas sons. Não derivam seus significados da gramática, nem se sujeitam às convenções e regras.

À medida que o reino humano se separa do natural, o vocabulário original de expressões humanas vai se tornando insuficiente. Criamos uma infinidade de novos objetos, distinções e processos por meio de uma nova relação objetiva com a natureza, e aos poucos a linguagem acompanhou o “ser” na ampliação do dualismo: eu e outro, humano e natureza, nome e coisa.

O progresso da humanidade nos levou ao declínio da linguagem em meros símbolos convencionais — simples representações da realidade — ao invés de se consolidar segundo a própria essência: uma dimensão sonora totalmente integrada com a realidade. É o Eu discreto e separado que anseia em dar nome às coisas da natureza, pois “dar nome” é dominar, categorizar, subjugar e objetificar. Não se admira que, no livro de Gênesis, o primeiro ato de Adão, a fim de confirmar seu “domínio divino” sobre os animais, foi nomeá-los. Antes da concepção de si mesmo, resultado da quebra entre Eu e outro que possibilitou esse domínio, não haviam nomes.

A opinião dos especialistas diverge quanto a origem da linguagem. Supõe-se que teria ocorrido em algum momento entre os Neandertais e cerca de 30 mil anos atrás, mas há consenso em definir a linguagem como um sistema de representação. Então nos deparamos com uma curiosa pergunta: o que havia pra se falar na sociedade da Idade da Pedra?

Alguns pesquisadores propõem que a fala era necessária para ensinar as 200 formas de pancadas utilizadas na produção de lâminas (fico entediado só de imaginar), mas o aprendizado desse tipo de habilidade se dá melhor pela observação e imitação, não pela descrição. Outros afirmam que a caça exigia a fala para coordenar os movimentos dos caçadores, embora, outra vez, o silêncio ajude mais.

Mas afinal, por que nos rendemos ao vício de tentar explicar tudo com base em sua utilidade para a sobrevivência? E se houveram outras razões para falar durante a época da caça e coleta? E se a fala nem mesmo surgiu por necessidade?

Posso citar algumas funções tão antigas quanto vitais: se divertir, brincar e contar histórias. Por que não essas, as origens da linguagem? Talvez sua função como instrumento da Separação foi crescendo gradualmente, em paralelo com outros avanços alienantes da cultura e tecnologia. Podemos especular também se a linguagem só se tornou necessária à medida que outras formas de separação começaram a exigir uma complexa coordenação da atividade humana.

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Nesse contexto, tornou-se particularmente relevante na divisão do trabalho, já incipiente na Idade da Pedra, que nos trouxe a padronização das coisas e eventos, assim como o poder efetivo dos especialistas sobre os demais. A divisão do trabalho requer um controle relativamente complexo das ações de um grupo. Na verdade, requer que toda a comunidade seja organizada e direcionada.

A padronização das coisas vai naturalmente de acordo com a sua respectiva abstração e nomenclatura. É parte e parcela do reino humano separado que cresceu ao redor das tecnologias em geral. Por isso, a linguagem não deve ser considerada de forma isolada dos outros elementos da Separação, mas parte de um vasto e complexo padrão.

A linguagem falada foi apenas o começo dessa divisão, pois a voz continua presente, mesmo que disfarçada conforme o vocabulário e o refino com os quais se apresenta. A invenção da escrita, portanto, foi um enorme passo em direção à completa substituição da comunicação direta pela arbitrária, através de símbolos abstratos. O divórcio entre a escrita e os objetos foi gradual, dos primeiros hieróglifos à formas cada vez mais abstratas, chegando, enfim, ao alfabeto — que já não representa mais nada.

Os tais alfabetos mudaram nosso modo de pensar de forma extensa e sutil, codificando a natureza em algo abstrato, ou seja, algo que pode ser divido e controlado de forma indiferente. Ao contrário de um pictograma, que deriva seu significado através da semelhança com o mundo real, as palavras do alfabeto podem ser compreendidas analiticamente, quebrando-as em partes menores. Como reflexo dessa característica, passamos a adotar uma concepção atomística do significado e, por extensão, do universo.

A voz acaba desaparecendo na escrita, substituída pela aparente objetividade da tinta no papel, divorciada de qualquer orador palpável. As palavras escritas existem como entidades independentes de si mesmas, já não direcionadas a um ouvinte específico — como se surgissem do nada, para falar com ninguém. Essa aparente objetividade da escrita explica porque as pessoas tendem a acreditar mais no que leem em vez do que ouvem. Palavras escritas parecem mais autoritárias.

Os dicionários legitimaram a ilusão estabelecida pelas palavras, uma ilusão de significados objetivos e independentes das interações entre orador e ouvinte. Do mesmo modo, os livros consolidaram a crença de que a busca pelo conhecimento deve ocorrer, necessariamente, no exterior, além do indivíduo. Curiosamente, sociedades não alfabetizadas geralmente são mais aptas em desenvolver autoconhecimento e busca interior.

Por fim, as impressões e mídias digitais levaram ao extremo esse divórcio entre significado e orador, pois se falta voz às palavras escritas, ao menos elas têm “mão”. Os caracteres substituem a mão por algo produzido em massa, deixando quase nenhum espaço para empatia entre orador e ouvinte, escritor e leitor. Percebemos, então, que a padronização da gramática, o declínio da comunicação em jargões e locuções estereotipadas, sem falar na chatice usual dos discursos públicos, são reflexos desse último estágio de extinção da “voz” na linguagem.

O objetivo dessa extinção, ao que parece, é fingir que as palavras não possuem nem mesmo um autor humano, como se fossem o mais puro fato. Na verdade, o uso da primeira pessoa é até proibido no meio acadêmico — como se a verdade brotasse de palavras difíceis, e a credibilidade, de um sujeito oculto ou indeterminado.

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Palavras definidas em termos de outras palavras, presas no ciclo vicioso de um sistema de representação abstrata, acabam por nos deixar abandonados (sem voz nem mãos), perdidos num mundo fictício, domesticado e finito. Por fim, nos entregarmos à ilusão de que podemos manipular e controlar a realidade da mesma forma que fazemos com as tais representações simbólicas. Quando confundimos palavras e realidade, os símbolos se materializam e assumem um estado objetivo que os investe com indevida autoridade.

A proliferação da voz passiva só faz agravar essa tendência: orador desaparece, “processo” se torna “coisa”, “tornar-se” se torna “ser” e forças impessoais passam a determinar objetos inertes — o paralelo com a física clássica é surpreendente. John Zerzan coloca desse modo: “Tal como uma ideologia, a linguagem cria falsas separações e objetificações através do seu poder em simbolizar. Essa falsificação só é possível pela indeterminação ou ocultação do sujeito, que termina por corromper a participação do ‘autor’ no mundo físico.” Em resumo, o mundo torna-se um objeto.

A ilusão do significado objetivo é bem conhecida, de Lao Tzu aos desconstrucionistas pós-modernos. Citando Thoreau: “São necessários dois para falar a verdade: um para falar, outro para ouvir.” Porém, essa ilusão só começou a fazer parte do consciente coletivo recentemente, revertendo-se em um colapso do significado linguístico. As palavras já não significam mais nada. Na política, candidatos se safam com discursos que contradizem suas ações, e ninguém parece se opor ou mesmo se importar.

Não é a dissimulação, já comum entre os políticos, que me impressiona, mas a nossa completa indiferença. Também estamos completamente habituados ao vazio da publicidade e das palavras que, cada vez mais, não significam mais nada. Alguém realmente acredita que o Itaú foi “feito pra você”? Ou ainda, que você e a Globo têm “tudo a ver”? Entre nomes de marcas, slogans publicitários e discursos políticos, a linguagem da mídia que inunda a vida moderna segue composta por mentirinhas, enganações e manipulação. A atual sede por autenticidade, portanto, não é nenhuma surpresa.

Outro sintoma do colapso linguístico é o uso frequente de palavras como “incrível”, “impressionante” e “maravilhoso” para descrever o que, na verdade, é trivial, entediante e comum. Estamos ficando sem palavras, ou melhor, as palavras estão ficando sem significado, nos forçando a elocuções cada vez mais exageradas na comunicação.

No entanto, a cresceste evidência da corrupção da linguagem tem seu lado positivo, pois torna mais clara a autenticidade dos modos não verbais de comunicação, baseados em experiências imediatas ao invés de simples representações. Esses modos de comunicação — em contraste com o distanciamento implícito na abstração, denominação e simbolização do universo — exigem o abandono das barreiras entre o Eu e o mundo.

Ao olhar nos olhos de quem amamos, só conseguimos estabelecer a mais autêntica das comunicações se deixarmos as máscaras cair, afastarmos qualquer fingimento, pararmos de maquinar para tentar dizer algo e, simplesmente, nos abrirmos uns com os outros. Quando finalmente deixarmos de lado o enorme esforço em nos manter separados (alheios ao mundo e às pessoas), as palavras se tornarão menos necessárias.

Menos necessárias, mas não obsoletas. O desenvolvimento da linguagem não chegou ao colapso por engano, mas progrediu (assim como a tecnologia) durante a gradual e inevitável evolução do homem. Esse declínio através da representação parece ter sido predestinado, como se nos forçasse a considerar um propósito além de sua função como instrumento da Separação. E se houver, qual seria o tal propósito? Ora, será o que sempre foi: contar histórias.

Toda a nossa civilização é baseada numa história, a história de si mesma. Esse reino humano que criamos não é verdadeiramente separado, basta observar o quanto transformamos o planeta. Aos poucos, acredito que manusearemos conscientemente o poder criativo da linguagem para contar uma nova história e, assim, dar início a uma nova fase criativa do desenvolvimento humano.




Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP). É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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