Existe uma máxima – talvez inventada pelas muitas redes sociais de hoje em dia, talvez pertencente a alguém eminente – que diz o seguinte:

“É longe de casa, da vida e do dia a dia que somos capazes de nos descobrir verdadeiramente”

Quem tem o prazer de viajar consegue compreender bem esse sentimento.

Quem lê Solaris, e entrega-se à leitura tentando absorver empaticamente cada experiência ditada no livro de Lem, acaba compreendendo esse conceito de forma teórica, mas exponenciada. A viagem a Solaris rompe as barreiras do “conhece-te a ti mesmo”. Esqueça os foguetes e roupas espaciais. Não é disso que falaremos.

Solaris X 2001

Quando foi escrito, no ano de 1961, o sucesso do cinema 2001 – Uma Odisseia no Espaço ainda não havia sido criado. Apenas sete anos depois, teríamos o filme dirigido por Kubrick nos cinemas. Mas é inevitável que haja uma comparação entre Solaris e 2001 (e falo tanto dos livros quanto dos filmes).

Muitas pessoas dão a Solaris o título de anti-2001, uma comparação curiosa, já que o livro de Stanislaw Lem precede a obra de Kubrick.

Mas de onde vêm, então, tais comparações?

Em 2001 temos uma exploração espacial, assim como em Solaris. Também em 2001, temos um ritmo mais lento que exige do espectador / leitor uma atenção fixa aos acontecimentos. Deveriam ser filmes praticamente iguais. Mas há uma diferença básica essencial: Em Uma Odisseia no Espaço, temos toda a frieza de astronautas em um futuro distante (agora um passado distante) tentando sobreviver a uma missão que acaba por se tornar uma tarefa de sobrevivência.

Contudo, por mais que qualquer obra acabe por levar em conta o fator humano, emocional e pessoal (no caso de 2001, o temor e a violência, unidos ao crescente desenvolvimento intelectual), não existe realmente, nesse filme, uma discussão humana. Há, sem dúvidas, questões sociológicas, insights sobre como a humanidade (no duplo sentido da palavra) reage a determinados graus de dificuldade e imprevistos. Mas nada muito além disso.

Não por acaso, um escritor nosso chegou a comentar que a OMS deveria prescrever o filme de Kubrick como um poderoso remédio para dormir. Não discordo… Jamais consegui assistir ao filme inteiro.

Já em Solaris, somos atirados, sem preparo algum, em um planeta há tempos pesquisado por cientistas dedicados à Solarística. Nossos olhos e ouvidos nessa história é Kris Kelvin, psicólogo versado em alguns pontos de Solarística, e enviado ao misterioso planeta de dois Sóis para estudar estranhos fenômenos que por lá ocorrem.

É só a partir do momento que Kris pisa na estação do Planeta, formado quase que por completo por um imenso oceano, que começamos a compreender o quanto esse livro nos transporta para experiências humanas íntimas, dolorosas, assombrosas e até nauseantes.

A Viagem para dentro da mente

Seria grande irresponsabilidade a minha tentar tratar dos detalhes da psicologia, posto que sou leiga neste assunto. Mas é de conhecimento geral que nossa mente muito pouco funciona conscientemente. A maior parte das informações e lembranças (boas, ruins, terríveis…) ficam armazenadas em locais da mente que nem sempre conseguimos ou queremos alcançar.

E é essa a grande questão de Solaris: Não é necessário que haja grande tempo de contato com a atmosfera do curioso planeta, recoberto por um infinito oceano de colorações riquíssimas, para que Kris Kelvin , o psicólogo, comece a notar que os demais tripulantes (apenas dois além dele, e um defunto) têm um comportamento estranho. A resposta para as esquisitices dos cientistas e colegas de trabalho de Kris surgem quando o psicólogo decide revistar o recinto, em busca de uma razão para qualquer coisa que esteja acontecendo de estranho. Antes sua curiosidade residisse apenas na ciência solarística, e nas discussões acerca da possibilidade de vida naquele imenso mar gelatinoso…

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Aliás, cabe aqui um pequeno parênteses: a primeira visão de Kris é a de uma mulher Negra e corpulenta, que caminha pela base trajando apenas uma saia amarela. Não há nenhuma discussão sobre essa figura no filme de 72, produzido por Tarkovsky (mais sobre ele aqui), mas não seria difícil relacioná-la a uma entidade bastante conhecida nas religiões afro-brasileiras: O Orixá feminino Oxum. Não há grandes comentários sobre as estranhas aparições no claustro científico. Mas elas existem e causam pavor.

O ápice desse sentimento de estranhamento, misturado a um medo terrível, chega quando, sem mais nem menos, Harey, ex-mulher de Kris aparece em seu quarto. Harey tinha perdido a vida dez anos atrás, por motivos que levam Kris Kelvin a tê-la sempre como uma memória dolorida e talvez até dolosa.

Solaris, assim, não é uma viagem a outro planeta simplesmente – por mais que seja fantástico pensar que o ser humano um dia terá a capacidade de ir a um corpo celeste distante, cujo céu está quase sempre enfeitado por um sol (azul ou vermelho).

A grande viagem a Solaris é a provocada pelo próprio planeta, que induz quem de lá se aproxima a experimentar tudo aquilo que a mente um dia se dera ao trabalho de encobrir.

(Alguns políticos brasileiros talvez encontrassem lá um bom lugar para punição)

Demasiado Humano, mas não o bastante

O fato de Solaris, sua atmosfera penetrante, e seu oceano ser talvez uma criatura apenas dotada de vida e capacidades biológicas e metafísicas, é um grande fator de diferenciação. Não é fácil encontrar, na literatura contemporânea ou antiga, nacional ou internacional, alguém que consiga fazer o trabalho de desprendimento conceitual que Stanislaw Lem fez ao conceber o planeta de dois Sóis. É como se, ao trabalhar com o oceano, ele trabalhasse com o que há de mais íntimo (Sagrado feminino? Ideia de morte e vida cujo símbolo maior é a água? Subconsciente? Inconsciente? Mundo onírico?) em qualquer indivíduo.

E como pensamentos (e ideias, já diria Guy Fawkes) são á prova de bala – imortais – não há o que segure nenhum dos estranhos visitantes, há muito esquecidos em uma zona de conforto obscura na mente de cada solarista. Mas, estando no planeta estranho, os problemas vêm à tona, e tudo o que não se resolveu no passado será, se não resolvido, remexido até os limites da sanidade.

Por todo o trabalho de espetar com a lança mais afiada o cerne dos problemas humanos, Solaris merece todos os louros da vitória de uma obra literária bem feia, bem-escrita, milimetricamente pensada, e muito além de nossas pobres mentes limitadas. Contudo, o erro básico cometido por Stanislaw lem, e mais tarde repassado por Andrei Tarkovsky, é o fato de tratar tão delicados assuntos com uma frieza quase soviética…

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Opa…

Pois é. Parece apenas uma piada implícita, mas os povos do leste Europeu (soviéticos, etc) têm por definição a produção de obras de arte mais “frias”. Primeiro por sua própria cultura. Se cada povo tem uma identidade, talvez a frieza nas reações seja a qualidade marcante dos artistas que moram onde já foi a União Soviética. É claro que isso sangra, inevitavelmente, para a cultura de forma geral.

Vide Doutor Jivago, um excelente filme, cheio de tensão e emoções, mas que só não foi realmente um show de expressões congeladas porque Omar Shariff era árabe.

Não consideraria um erro, pois é complexo esperar algo muito quente, dramático ou explosivo de um povo que não possui essa marca. É como esperar a fleuma britânica de um escritor brasileiro. Mas, se eu precisasse reclamar desse livro, o ponto chave seria esse.

No fim das contas, a menos humana é a pessoa mais provida de sentimentos, e mais capaz de expressá-los.

Da Solarística: o conhecimento é um caminho sem retorno.

O conhecimento é um caminho pelo qual andamos e que não permite retornos.

Isso é o que dizemos aos alunos, pois é a mais pura verdade. Em todo caso, é maravilhoso pensar que não há nada que tire de você seus conhecimentos e as consequências provenientes deles.

Contudo, se as experiências que determinam uma fase da sua vida chegam para perturbá-lo, e o conhecimento adquirido a partir dessas vivências te leva a caminhos sem retorno algum (nenhuma solução para a vida, para recomeçar, para lembrar de que é feita a sua persona, se esta foi roubada pelos seus próprios pensamentos ao montar outrem), talvez a amnésia fosse um bom caminho.

Após rever e conviver diariamente com o espectro de sua ex-mulher morta, e precisar lidar com fatos complicadíssimos (inclusive com a consciência avançada do espectro de Harey, que sabe que não é humana de verdade), Kris entra em um estado de Stand By. O que ocorre ao fim do livro deve ser experimentado pelo leitor. Assim como todo o livro.

Mas é claro que, diante dos dilemas de Kelvin, melhor compreendemos os dilemas nossos, incapazes de encontrar um escape, um fim… e nós, qualquer paz que valha uma vida sossegada na Terra, em lugar de uma fantástica viagem a um mundo desconhecido.

(Autora: Raquel Pinheiro)

(Fonte: nerdgeekfeelings)

*Texto publicado com autorização do site parceiro.




A busca da homeostase através da psicanálise e suas respostas através do amor ao próximo.

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