Uma amiga certa vez me confidenciou sobre seu medo irracional de borboletas. Isso mesmo: borboletas. Ela não conseguia permanecer numa sala com uma borboleta se debatendo em algum canto. Também era incapaz de achar, como a maioria da Humanidade, que um canteiro de flores cheio de borboletas sobrevoando as plantas era um cenário bonito e relaxante. Para ela, borboletas causavam um pavor inexplicável. Mas o motivo dela ter me contado seu segredo não era pelo medo em si, porque ele continuava lá. O que ela queria me contar, entre envergonhada e orgulhosa, era como ela tinha conseguido visitar um borboletário em sua viagem a Campos do Jordão sem sair correndo. Queria me falar sobre a sua coragem.

O processo tinha sido longo, tendo se iniciado meses antes, quando um grupo de amigos tinha feito o convite para a viagem, e um deles tinha comentado sobre o tal borboletário, de como era um lugar impressionante e que valia a pena ser visitado. É claro, ninguém sabia do seu medo de borboletas. E foi nesse momento que ela decidiu que ninguém precisaria saber. Começou a trabalhar seu próprio medo. Leu sobre o assunto, procurou a ajuda, fez exercícios de relaxamento, e tudo o que julgou que poderia ser útil para lidar com aquilo. Aos poucos, foi entrando em contato com borboletas. Uma só. Depois mais uma. Depois um passeio no jardim, com duas ou três. O medo foi se transformando em incômodo, e ela já conseguia se controlar. A visita ao borboletário, no fim, acabou sendo o melhor da viagem dela. Tinha sido uma experiência libertadora. E o mais incrível foi que ninguém nem percebeu.

Fiquei pensando no quanto tendemos a minimizar os medos alheios. “Mas é só uma borboleta”, diria qualquer um. Borboletas não fazem mal a ninguém. Achamos argumentos válidos para todos os tipos de medo, menos para nosso medo da morte. Quando alguém diz que está com medo de morrer, o silêncio é nossa principal resposta. Fugimos. A morte, desde sempre, aterroriza, pelos mais diversos motivos. E, quanto maior o terror, maior a coragem de quem o enfrenta.

Lembrei das tantas vezes em que ouvi colegas médicos, consternados, escapando do assunto ao menor vislumbre de que o paciente gostaria de debatê-lo. Ou dos inúmeros pacientes que passavam seus dias, um após o outro, ignorando descaradamente (ou fingindo ignorar) a própria decadência física que os levaria ao final de suas vidas. O medo nos faz agir das formas mais espantosas…

O fato é que o medo, seja da morte ou de borboletas, é capaz de modificar o curso de uma vida, e o medo da morte faz isso de forma cruel, muitas vezes impedindo as pessoas de entrarem em contato com o que há de melhor nelas mesmas. Mas há pessoas que, por algum motivo (divino, pessoal ou simplesmente ininteligível para quem está de fora), conseguem lidar com a morte encarando-a bem nos olhos. Mais ou menos como minha amiga fez com suas borboletas (guardadas as devidas proporções, obviamente).

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Quem olha sem muita atenção para seus semblantes tranquilos, para sua resignação, para o olhar cheio de paz, pode achar que o processo foi fácil. Um olhar desatento pode até chegar a imaginar que a própria morte não é, afinal, nada demais. É só mais uma borboleta. Ou, pior, pode ficar com a impressão de que essas pessoas não tiveram a coragem necessária para lutar pelas próprias vidas. Simplesmente se entregaram.

Para esses desatentos, fica meu aviso: olhem de novo. Olhem bem de perto. Tentem perceber os (inúmeros) arranhões escondidos sob o semblante tranquilo. Tentem enxergar, por trás da resignação, os incontáveis momentos de dor e angústia que precisaram ser trabalhados e superados até aquele exato momento de paz. Acreditem: foram muitos. Ouvir sobre a incurabilidade da doença. Sobre a ausência de opções terapêuticas disponíveis. Sobre a expectativa limitada do tempo de vida. Ouvir um irmão buscando, desesperadamente, algum tratamento milagroso que resolvesse a situação. Enxergar, por trás dos olhos vermelhos de uma filha, o quanto sua partida seria difícil. Lidar com a dor, com a falta de ar, com a perda da autonomia. Para cada um desses momentos, um espinho cravado no coração. E, para cada espinho, a paciência para retirá-lo e cuidar da ferida deixada. Sem desistir de viver o melhor possível pelo tempo que estivesse disponível.

Transformar a própria morte numa experiência significativa ou até libertadora exige muitas coisas, mas acredito que o requisito principal seja a coragem. Isso não tem nada a ver com não sentir medo ou mesmo com ignorá-lo quando ele se apodera de nós. Coragem tem a ver com seguir em frente, apesar do medo. Ele está sempre lá, por trás dos olhos tranquilos, ou das palavras doces de despedida. O que muda é a capacidade de mantê-lo, em nossa escala de prioridades, num nível abaixo de coisas que são muito mais importantes. “Estou com medo, mas conversar com minha filha sobre como ela é incrível para mim é muito mais importante”. “Estou com medo, mas quero muito ser lembrado como alguém que valeu a pena ter conhecido”. Nesse caminho difícil, legados vão sendo plantados e cultivados. A vida adquire significado quando entendemos nosso papel no mundo, não importa o papel em si.

A boa notícia é que todos nós, sem nenhuma exceção, podemos trabalhar nesse significado a qualquer momento, desde sempre. Nós morremos exatamente como vivemos. A proximidade da morte não vai nos transformar em outras pessoas. Não ficaremos mais valiosos, mais inteligentes, nem tampouco mais destemidos. O que mudará será apenas nossa noção do que é significativo, e isso pode ser feito já. Em última análise, o mais importante você já sabe: a vida acaba. O que não acaba é o que você faz com ela. Estamos, todos, a caminho do borboletário. Sem exceção.

Alguém certa vez escreveu (não me lembro quem foi) que o segredo é não correr atrás das borboletas, e sim cultivar o jardim para que elas venham até você. Olhe para o lado, enxergue uma borboleta. Aprenda a lidar com ela. Lide com duas, três, uma dúzia. Aprenda a se sentir mais confortável no meio de um jardim cheio delas, e cuide do jardim para que elas não voem para longe de você. Mesmo que dê medo, e mesmo que dê trabalho. Faça isso conscientemente, da forma que fizer sentido para você: cultivando seus relacionamentos, agindo em prol do mundo ao seu redor, espalhando bons sentimentos e boas atitudes por onde quer que você passe. Encha seus momentos de significado. É do significado que nasce a coragem. Da coragem para um final digno e tranquilo, acredite, é apenas um pulinho.

(Autora: Dra. Ana Lúcia Coradazzi)

(Fonte: nofinaldocorredor)

*Texto publicado com autorização da autora.




A busca da homeostase através da psicanálise e suas respostas através do amor ao próximo.

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