Fritei mais uma porção de bolinhos de chuva enquanto o café era coado. A casa recendia à família. Limpei as mãos engorduradas e maternais no avental florido e meigo. Mas se limpasse nas calças surradas e macias, com elástico na cintura, pouca diferença faria. Arrumei os bolinhos com uma ternura mecânica na travessa colorida, tão meiga quanto o avental.

Despejei o café recém passado no bulé de florezinhas azuis que faziam jogo com xícaras igualmente delicadas. Sempre, às cinco da tarde, aos domingos, sentávamos ao redor da mesa oval da cozinha e comíamos bolinhos de chuva cheios de canela com café. De uns tempos para cá, esquecia-me de retirar o avental ou passar uma água no rosto suado antes de encher a xícara de todos.

Desde menina relacionava o gosto doce e oleoso dos bolinhos de chuva com família, aconchego, fim de tarde cinzento e caloroso. Da primeira vez que os comi foi vovô quem os fez energicamente e furiosamente bondoso. Comi-os com boca boa. Sem medo de engordar. Sem medo de que caíssem pesados demais. Sem medo de estragar o jantar. A infância é uma fase aterrorizante e lúdica.

Um pouco antes de me casar, aprendi a receita retirada de um caderno estropiado de receitas da minha mãe. As páginas amarfanhadas e amareladas davam uma dignidade especial à simples receita.

Aprendi a fazer bolinhos de chuva. Bolo de cenoura. De chocolate. De laranja. Aprendi a reconhecer a frescura de um peixe embora não os comesse. Fazia um linguado com alcaparras de comer rezando… pelo menos era o que diziam. Aprendi a manusear com vigor qualquer tipo de carne, conhecia as melhores receitas de molhos, preparava massas em casa, tortas douradas recendendo à canela e dedicação.

Aprendi a confeitar, a enrolar a massa dos pãezinhos de queijo com as mãos, aprendi onde comprar as verduras mais frescas, a arrumar a mesa mais bonita, a sorrir o sorriso mais plácido com o coração aos berros.

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Aprendi a cantarolar com raiva, a olhar pela janela sem ver a rua, a tomar mais um gole de alguma coisa qualquer sem vontade, aprendi a descarregar minha fúria batendo a massa do pão. E quando ele saía fumegante, dourado por fora e macio por dentro do forninho elétrico da minha cozinha dos sonhos, esquecia-me dos meus piores pesadelos.

Aprendi a dizer “Tudo bem, sem problemas” quando queria mandar à merda. Aprendi a calar quando queria gritar. Aprendi a falar quando queria chorar. Aprendi a beijar quando queria vomitar verdades. Aprendi a preparar fantásticas e dulcíssimas compotas caseiras para acompanhar o sorvete de creme quando sentia um gosto amargo na alma.

Aprendi a dizer sim quando queria fugir. Aprendi a negar o que mais desejava. Aprendi a temperar os dias com alecrim, orégano, pimenta dedo de moça e muita resignação. Diziam que minha carne de panela com molho de tomate carregado de orégano era uma benção. O par perfeito com purê de batatas bem amanteigado. Além do purê, gostava de colocar umas micro cenouras e umas ervilhas no canto do prato. Dava uma cor. A cor que fugia dos meus dias.

Aprendi a combinar joguinhos americanos descartáveis e alegres com arranjos de flores enquanto tudo dentro de mim andava na mais perfeita desordem. Aprendi a jogar a minha libido nas panelas e nos potes enfeitados por bisquis, onde guardava chocolatinhos de menta e bolachinhas de nata. Nada. Mais nada havia restado além das refeições em família, das festividades de fim de ano, dos brigadeiros enrolados às pressas no aniversário das crianças. Mais nada havia restado além das toalhas bonitas de mesa com guardanapos de pano, das colchas cheias de aplicações nas camas. Mais nada havia restado além dos novos copos para vinho e do jogo de sousplat que ganhei em algum dia das mães qualquer. Mais nada havia restado além do caminho de mesa que minha sogra tricotou e das duas poltroninhas lindas de veludo bordo que olhavam para a lareira que não funcionava.

Eu era como aquela lareira. Fui feita para crepitar. Mas tudo que fazia era enfeitar e olhar para a sala impassivelmente. Durante uma festa de fim de ano, mais uma festa entre tantas outras, encerrando mais um ano como tantos outros, entre o prato de lentilhas e a bandejinha com romãs, dei um gole longo no meu champanhe sem sentir o gosto, com os olhos distantes e a mesma destreza com que aprendi a botar um punhado de molho de tomate na palma da mão para ver se estava bom de sal e pimenta do reino.

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E entre beijos frios, abraços frouxos e votos de felicidade eterna, tomei o restinho do meu champanhe morno e sem borbulha. E depois que todos se foram e restaram apenas os pratos sujos, os cinzeiros transbordantes e um profundo sentimento de tédio, comecei a jogar fora os restos de comida na pia da cozinha.

Guardei as sobras do arroz cheio de passas no tupperware, que enfiei na geladeira meio a contragosto, entre algumas fatias de tender e um pouco de carne louca. Odiava arroz com passos e salvando dos escombros de um cinzeiro qualquer uma bituca de cigarro, o acendi meio displicentemente.

Odiava pôr passas no arroz, encaixar as sobras de comida na geladeira. Odiava comer tender por duas semanas. Odiava comida de fim de ano. Odiava os sorrisos vazios que uns lançavam aos outros. Odiava meu próprio sorriso que não reconhecia como meu. Odiava fumar às escondidas. Odiava demonstrar meu afeto fritando bolinhos de chuva nas tardes de domingo. Odiava o gosto enjoativo e pegajoso que ficava nas minhas mãos limpadas às pressas no avental cafona.

Liguei o triturador a fim de calar as minhas vozes interiores, mas elas continuaram me gritando histericamente nomes profanos, palavras obscenas, pedidos desesperados de socorro. E mirando um olhar desdenhoso para as sobras de lentilhas num prato qualquer, comecei a rir maldosamente.

Não acreditava em sorte nem em azar. Acreditava que jogamos um jogo em que todas as regras foram feitas para perdermos de uma forma ou de outra.

Acendi outra bituca de cigarro e olhei pela janela grande da sala de estar. Queria sair pela rua com meu vestidinho branco e vaporoso de anos atrás. Costas de fora, braços nus, alma escancarada como a janela da sala que deixava a noite entrar despudorada. Queria sair rindo alto por aí, sem compostura.

Queria que os saltos das sandálias douradas e baratas quebrassem só para poder andar mancando ou descalça, com os sapatos ordinários nas mãos. Queria não ter hora para voltar nem lugar para chegar. Queria sair por aí com o gosto do champanhe gelado e borbulhante na boca. Queria sair por aí por sair, sem um porquê, sem um por quem. Sem precisar entochar arroz com passas na geladeira entre as fatias de tender que seria obrigada a comer por duas semanas e o resto de carne louca que apesar de deliciosa me fazia lembrar daquelas intermináveis festinhas infantis, onde se encontra restos de brigadeiro pisado pelos tapetes, manchas de gordura nos estofados e precisa-se suportar papos inebriantes sobre receitas menos calóricas de bolos sem glúten e gordura trans ou as melhores promoções da cidade. Bolo sem glúten, doce sem açúcar, cerveja sem álcool, sexo sem orgasmo, conversa sem inteligência, vida sem sentido.

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Com um sorriso de canto de boca extremamente gentil, queria mandar todas à merda com seus conselhos sobre moda, alimentação ideal e como criar filhos tão fúteis e idiotas quanto elas. “Aí estão os futuros pretendentes dos meus filhos…” Cerrava os dentes. Comida de festa infantil sempre cai meio pesada. Queria mandá-las à merda aos berros ou simplesmente dizer num tom normal e calmo de voz que iria rapidamente ao banheiro cortar os pulsos. Um dia, na minha histérica ingenuidade, tentei conversar sobre um livro. Elas se entreolharam com os lábios levemente entreabertos em evidente sinal de constrangimento. Uma delas retomou a conversa sobre um brechó que vendia roupas incríveis pela terça parte do preço original.

Queria sair por aí com a minha boca suja, meu riso fácil. Queria sair por aí sem precisar dar satisfações a ninguém nem ser obrigada a limpar a caca que os filhos mal educados dos outros fazem nos meus tapetes. “Puta que pariu!” “Estas vacas conhecem dezenas de receitas saudáveis e não conseguem ensinar os seus merdinhas a comerem que nem gente?”.

Meu marido me achava pedante. As mães dos amigos de nossos filhos eram mulheres muito gentis. Preocupadas com a saúde de suas famílias e sempre muito elegantes. Sabiam como ninguém fazer um bolo saudável e combinar sapatos com bolsas que ocupavam metade dos apartamentos.

Eu é que tinha mania de mania de pensar, de filosofar, de achar que a vida precisa ir além… a vida é simples e não há nada que um sapatinho novo não resolva. E o grande drama de uma mulher deve se resumir a massagear o bumbum três vezes por semana até remover toda a celulite.

Dei uma tragada profunda na bituca do cigarro. Dava para ouvir o som do ronco que vinha do quarto principal. Senti vontade de cuspir. Sim, minha boca encheu de água. Um nojo que me comia por dentro, contaminando tudo como as passas ao arroz.

Corri até o lavado e enfiei a cabeça no vaso que exalava a urina. Vomitei num jato só uma pasta esbranquiçada e azedíssima. Senti gosto de tender, compota em lata e tempo perdido.

Abandonei meus livros para trás e no lugar dos meus contos melancólicos e artigos irreverentes, comecei a fritar bolinhos e aguentar conversas insuportáveis. No lugar do meu olhar curioso e mente ágil, apressei as minhas mãos para marinar a carne e pôr a mesa sem perder tempo. No lugar do meu jeito atrevido, das minhas tardes nas bibliotecas e minhas noitadas boêmias, regadas a vinho barato, flertes intensos e conversas densas, aprendi a negar a mim mesma nas noites insípidas e numa rotina que não desejaria ao meu pior inimigo. Depois que ele se satisfazia dentro de mim ou entre as minhas coxas, mal tinha tempo de me limpar e voltar à cama antes que começasse a roncar. E nas minhas intimidades sentia o mesmo quê pegajoso que ficava em minhas mãos quando fritava os bolinhos de chuva aos domingos.

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Sim, odiava o meu marido. Odiava o seu ronco, seu sexo inexpressivo, sua mania petulante de ver encanto em tudo e em todas. Sim, odiava o meu marido. Odiava o seu jeito de bom moço, sua cara de quem merecia um prêmio por ter dado uma família a uma mulher que andava meio sem rumo por aí, recitando Florbela Espanca com um sorriso amplo, de costas de fora, sandálias na mão e uma vida toda pela frente.

Fui encurralada entre o fogão e a geladeira e preparar uma receita nova era o meu principal momento de êxtase. E como Shirley Valentine estava conversando com o forninho elétrico. Odiava a maneira como ele via e entendia ou não entendia tudo. Como ele podia considerar o que aquelas mulheres vazias falavam. Pior do que a traição sexual é a intelectual. Para esta não há perdão. E eu não o perdoava. E eu não o perdoaria jamais.

Daria dez anos da minha vida por algumas horas num barzinho boêmio junto a uma garrafa de vinho barato e uma conversa densa, olhos nos olhos. Daria dez anos da minha vida para ficar um domingo sem sentir a gordura dos bolinhos de chuva em minhas mãos e o calor do fogo na minha pele. Daria dez anos para deixar de ser mãe e esposa para ser eu mesma. Daria dez anos da minha vida para viver perdida e sem rumo mais uma vez. Nunca tentei cortar os pulsos ou abusar na quantidade de pílulas para dormir. Também nunca cogitei a ideia de me atirar no vão do metrô, todas as tardes quando ia buscar as crianças na escola.

E mesmo olhando da janela da sala, nenhum impulso me conduzia a atirar-me ao nada. Já estava no nada. Já estava sepultada entre os escombros da geladeira, no meio de milhares de uvas passas.

Entrar numa banheira quente e deixar-me levar pelo momento seria breve e simples. O meu engano merecia punição maior. Cada vez que o óleo borbulhasse fervendo na grande frigideira, eu olharia ironicamente para os meus pulsos brancos e perfeitos, sem marcas ou cicatrizes.

*Este texto é uma ficção.




Profa. doutora , idealizadora da Pós em Cinema do Complexo FMU, escritora e psicanalista. É colunista do site Fãs da Psicanálise.

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